Venta-Romba
Conto de Graciliano Ramos publicado na revista Mocidade de julho de 1949
Graciliano Ramos
Ofereceram a meu pai o emprego de juiz substituto e ele o aceitou, sem nenhum escrúpulo. Nada percebia de lei, possuía conhecimentos gerais muito precários. Mas estava aparentado com senhores de engenho, votava na chapa do governo, merecia a confiança do chefe político — e achou-se capaz de julgar.
Naquele tempo, e depois, os cargos se davam a sequazes dóceis, perfeitamente cegos. Isto convinha a justiça. Necessário absolver os amigos, condenar os inimigos, sem o que a máquina eleitoral emperraria.
Os magistrados de anel e carta diligenciavam acomodar-se, encolher-se, faziam vista grossa e muita bandalheira. De repente acuavam, tinham melindres que o mandão do local não entendia e lançava à conta de má vontade. E lá vinham rixas, viagens rápidas, afrontas, um libelo contestado a punhal ou cacete. Enfim os bacharéis se aguentava mal. Dispensavam-lhes obséquios, salamaleques — desviavam-nos. Subsistia o juiz de direito que ordinariamente se ausentava da comarca.
Os funcionários matutos não vacilavam: ignorando a razão de intransigências, amoleciam imperturbáveis, assinavam despachos redigidos pelo escrivão.
Foi assim que meu pai recebeu um título e suportou a alegria ruidosa do preto José Luiz que, aos sábados, da sala à cozinha, ria, gritava, dançava, entusiasmado:
— Cadê o nosso juiz substituto?
Não havia motivo para jubilo. Conservo dessa autoridade uma recordação lastimosa. Venta-Romba pedia esmola gemendo uma cantilena indiferente às recusas:
— Como vai, seu major? E a mulher de seu major, os filhinhos de seu major?
A voz corria mansa; as rugas da cara morena se aprofundavam num sorriso contente; o nevoeiro dos olhos se iluminava com estranha doçura. Nunca vi mendigo tão brando. A fome, a seca, noites frias passadas ao relento, a vagabundagem, a solidão, todas as misérias acumuladas num horrível fim de existência haviam produzido aquela paz. Não era resignação. Não parecia ter consciência dos padecimentos: as dores escorregavam nele sem deixar mossa.
— Como vai, seu major? Os filhinhos de seu major?
Humildade, serena, insignificância, as mãos tremulas e engelhadas, os pés disformes arrastando as alpercatas, procurando orientar-se nas esquinas, estacionando junto dos balcões. Restos de felicidade esvaíam-se nas feições tranquilas. O aió sujo pesava-lhe no ombro; o chapéu de palha esburacado não lhe protegia a cabeça curva; o ceroulão de pano cru, a camisa aberta, de fralda exposta, eram andrajos e remendos.
Aparecia uma vez por semana, às sextas-feiras, quando se realizava a caridade: um pires de farinha nas casas particulares, um vintém nas lojas e nas bodegas. Mas as famílias de lojistas e bodegueiros não exerciam a caridade porque isto seria redundância.
— Peça na venda.
Tínhamos ordem para afastar os peditórios.
Uma sexta-feira Venta-Romba nos bateu à porta. Deve ter batido: não ouvimos as pancadas. Achou o ferrolho e entrou, surgiu de supetão na sala de jantar, os dedos bambeando o cajado. As moças assustaram-se, os meninos caíram em grande latomia.
— Vá-se embora, meu senhor, disse a patroa.
A distância, esse tratamento de meu senhor a uma criatura em farrapos soa mal. Era assim que minha mãe se expressava dirigindo-se a qualquer desconhecido. Trouxera o hábito da fazenda e isto às vezes não revelava polidez. Em tons vários, meu senhor traduzia respeito, desdém ou, enfado. Agora, com estridência e aspereza indicava zanga e a frase significava pouco mais ou menos:
— Vá-se embora, vagabundo.
Venta-Romba perturbou-se, engasgou-se, apagou o sorriso; o vexame e a perplexidade escureceram-lhe o rosto; os beiços contraíram-se, exibindo as gengivas nuas.
— Sinhá dona… murmurou.
Com certeza buscava explicar-se. Interjeições roucas e abafadas escapavam-lhe; os olhos baços percebiam o terror das crianças e arregalavam-se aflitos.
Minha mãe era animosa. Atirava, montava, calejara na vida agreste. Certo dia um coronel lhe entrou subitamente na casinha lívido, rogando-lhe que o escondesse da polícia: trancou-o num quarto, guardou a chave, tomou as primeiras medidas necessárias à fuga. Não precisava que o marido, pessoa débil, viesse enxotar Venta-Romba. Mas expediu o moleque José com um recado e plantou-se junto à mesa, a espera, silenciosa, os cantos da boca repuxados, a mancha vermelha da testa muito larga.
Diante dela o pobre intentava aliviar a impressão má, e cada vez mais se confundia; deixou passar o momento de retirar-se; coçava a cabeça, gemia desculpas asmáticas, e ninguém o escutava. Num arranco de impaciência bateu com o pau no tijolo, agravou a balburdia. A severidade vincou o rosto da mulher; as moças cochicharam rezando e fixaram a atenção na entrada do corredor.
Nesse ponto chegou meu pai. Chegou alvoroçado, branco, e logo se fortaleceu, pôs-se a interrogar Venta-Romba, que desabafou, estranhou a desordem: implicância dos meninos, gritos, choro, a dona sisuda, as doninhas arrepiadas. Fuzuê brabo à toa, falta de juízo. Graças a Deus tudo se alumiava. Descobriu-se, despediu-se, caminhou de costas:
— Adeus, seu major.
Meu pai atalhou-o. Antes de qualquer sindicância, tinha-se resolvido. Enganara-se com os exageros do moleque, enviara um bilhete ao comandante do destacamento. A franqueza o impelia a decisões extremas. Imaginara-se em perigo. Reconhecia o erro, mas obstinava-se. Misturava o sobressalto originado pela notícia ao enjoo que lhe causava a figura mofina — e desatinava. Propendia a elevar o intruso, imputar-lhe culpa e castigá-lo. De outro modo, o caso findaria no ridículo.
— Está preso, gaguejou, nervoso, porque nunca se exercitara naquela espécie de violência.
Alguém tossiu na sala, um boné vermelho apareceu no fim do corredor: Insensível, Venta-Romba tropicava como um papagaio, arrimava-se penosamente à ombreira da porta. Deteve-se, largou uma exclamação de surpresa e dúvida. E quando a frase se repetiu, balbuciou descorado:
— Brincadeira de seu major.
Espalhou a vista em roda: o barulho das crianças fora substituído por uma curiosidade perversa; as moças tremelicavam na costura; a face de minha mãe expunha indiferença, imóvel; um sujeito passava na sala de visitas, exibindo pedaços de farda vistosa. Claro que não era brincadeira, mas o velho estonteado não alcançava o desastre. Arredou-se da porta, encostou-se à parede, esboçou um movimento de defesa. Se não fosse banguelo rangeria os dentes; se os músculos não estivessem lassos, endureceria as munhecas, levantaria o cajado. Impossível morder ou empinar-se; o gesto maquinal de bicho acuado, esmoreceu; devagar a significação da palavra rija furou, como pua, o espírito embotado. E emergiu da trouxa de molambos uma pergunta flácida:
— Por que, seu major?
Era o que eu também desejava saber. À janela, distraindo-me com o voo das abelhas e o zunzum do cortiço pendente do beiral, vira o espalhafato nascer e engrossar em minutos. Não havia colaborado nele — e a interrogação lamentosa me abalava. Por que? Como se prendia um vivente incapaz de ação? Venta-Romba movia-se de leve. Não podendo fazer mal tinha de ser bom. Difícil conduzir aquela bondade trôpega ao cárcere, onde curtiam pena os malfeitores.
— Por que, seu major?
O cochicho renovado ficou sem resposta. Seu major não saberia manifestar-se. Assombrara-se, recorrera à força pública e receava contradizer-se. Talvez sentisse compaixão e se reconhecesse injusto. Enraivecia, acusava-se e despejava a cólera sobre o infeliz, causa do desarranjo. Em desespero roncou injúrias. O polícia que pigarreava na sala se avizinhou, a blusa desabotoada, faca de ponta à cintura, as reunas de vaqueta rangendo.
Vinte e quatro horas de cadeia, uma noite na esteira de piripiri, remoques dos companheiros de prisão, gente desunida. Perdia-se a sexta feira, esfumava-se a beneficência mesquinha. Como havia de ser? Como havia de ser o pagamento da carceragem?
Venta-Romba sucumbiu, molhou de lágrimas a barba sórdida, extinguiu num murmúrio a pergunta lastimosa. O soldado ergueu-lhe a camisa, segurou o cós do ceroulão, empunhou aquela ruína que tropeçava e queria aluir, atravessou o corredor, ganhou a rua.
Fui postar-me na calçada, sombrio, um aperto no coração. Venta-Romba descia a ladeira aos solavancos, trocando as pernas, desconchavando-se como um judas de sábado de Aleluia. Se não o agarrassem cairia. O aió balançava, na cabeça desgovernada os vestígios de chapéu iam adiante e vinha atrás; as alpercatas escorregavam na grama.
Eu experimentava desgosto, repugnância, um vago remorso. Não arriscara uma palavra de misericórdia. Nada obteria com a intervenção, certamente prejudicial, mas devia ter afrontado as consequências dela. Testemunhara uma iniquidade e achava-me cúmplice. Covardia.
Mais tarde quando os castigos cessaram, tornei-me em casa insolente e grosseiro — e julgo que a prisão de Venta-Romba influiu nisto. Deve ter contribuído também para a desconfiança que a autoridade me inspira.
*Publicado originalmente na revista Mocidade de julho de 1949.
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