Religião e Racismo: a discriminação racial em Alagoas

Igreja de São Gonçalo Garcia dos Homens Pardos, em Penedo, sendo reformada no início do século XX

Ernani Méro*

Na Província das Alagoas existiu o fenômeno da discriminação racial nas Irmandades, o qual provaremos com a transcrição de vários Compromissos, onde o negro era, como o pardo renegado, em meio aos componentes das instituições religiosas. Igualmente, mostraremos já outros Compromissos com a revogação de artigos que determinavam a não inclusão dos homens de cor.

Professor e escritor Ernani Otacílio Méro

Voltemos um pouco para a situação do escravo em Alagoas. É importante o focalizar dessa situação para mostrar que em nossa Província o fenômeno escravista foi um fato inconteste.

Afirma o historiador e Mestre Moacir Santana em seu trabalho de fôlego — Contribuição à História do Açúcar em Alagoas — pág. 145: “A presença do negro na história do açúcar de Alagoas é uma constante”.

Este testemunho nos leva a aceitar que a situação em Alagoas não foi diferente e como tal o negro procurou na Igreja o seu refúgio para encontrar espaço para se sentir gente.

Um outro testemunho de igual valor é do Mestre Manuel Diégues Júnior em — Banguê nas Alagoas — pág. 77: “É o engenho o centro da constituição social das Alagoas, como de resto de toda a área açucareira de todo o país. Nele se agrupa o elemento humano, seja o proveniente dos grupos indígenas seja o originado das importações de escravo negro“…

Missa na capela da Faz. Água Limpa - RJ - Foto de Manuel Maria de Paula Ramos em 1870

Missa na capela da Faz. Água Limpa – RJ – Foto de Manuel Maria de Paula Ramos em 1870

Continua o festejado Mestre, pág. 81: “O que não se pode duvidar é que o negro apareceu nas Alagoas quase com o primeiro branco, afirma o historiador Alfredo Brandão; apareceu nos engenhos, com os canaviais, com os roçados, com o povoamento colonizador do território alagoano”.

Portanto, as Irmandades em Alagoas têm a sua história e vamos encontrar em Penedo: Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, Irmandade de São Gonçalo Garcia dos Homens Pardos, Irmandades de Brancos do Santíssimo Sacramento, das Almas e Ordem Terceira de São Francisco. Em Marechal Deodoro Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, Irmandade de Nossa Senhora do Amparo dos Homens Pardos, Ordem Terceira de São Francisco já extinta.

Poderíamos fazer uma pergunta: e Maceió? O trabalho rico em informações do talentoso historiador Félix Lima Júnior —Irmandades —, inicia com uma informação valiosa sobre a Vila de Santa Maria Madalena de Alagoas do Sul (Marechal Deodoro) que comprova o que acima afirmamos:

“No afastado ano de 1683 os moços daquela vila, reunidos na igreja Matriz do lugar, fundavam a irmandade de Nossa Senhora do Amparo. A base do compromisso daquela confraria dos homens pardos foi firmada em abril de 1685 na matriz da vila, com a assistência do Vigário licenciado Joseph Nunes de Souza“. Adiante encontramos: “A Irmandade do Santíssimo Sacramento, quando aparece, é para brigar por questões de charola, em público, com maior desplante”. Esta informação relaciona-se a existente na Matriz de Maceió, fundada em 1 de março de 1825″.

Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, em Maceió

Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, em Maceió

O mestre Félix Lima Júnior nos fornece informações valiosíssimas: A Irmandade mais antiga do Sacramento é a erecta na Matriz do Meirim, freguesia de Nossa Senhora do Ó fundada em 19 de dezembro de 1778; A Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Martírios em 3 de maio de 1833 formada por gente de cor, inclusive escravos, “desalojando com o correr dos tempos, pois, aristocratizou-se, os irmãos pretos…” ; a Irmandade do Bom Jesus dos Passos na Matriz de Maceió fundada em 8 de setembro de 1862, “não era permitido o ingresso de libertos e cativos”; Irmandade das Almas organizada em 8 de agosto de 1924; a Irmandade de Nossa Senhora do Livramento foi criada em 2 de março de 1825, “considerando que a dita Irmandade destinada primitivamente, tão só aos homens pardos”… ; Irmandade de Nossa Senhora Mãe do Povo em 22 de julho de 1839; Irmandade de Nossa Senhora dos Prazeres organizada em 25 de maio de 1871; Irmandade de Nossa Senhora do Rosário fundada em 22 de fevereiro de 1829; Irmandade de São Benedito organizada por homens de cor em 14 de maio de 1862.

Igreja de São Gonçalo Garcia dos Homens Pardos, em Penedo, sendo reformada no início do século XX

Igreja de São Gonçalo Garcia dos Homens Pardos, em Penedo, sendo reformada no início do século XX

Essas informações do Mestre Félix Lima Júnior nos mostram que em Maceió o problema existiu com uma variedade de irmandades, aliás, fato comum nas vilas e cidades do Brasil Colônia.

É chocante, termos que relatar fatos, onde a repulsa ao homem de cor pelas irmandades era incontestável. Aliás esse mal social, bem contrário aos sentimentos cristãos, gerou por incrível que pareça, algo positivo. Com as rivalidades entre Ordens Terceiras e Irmandades, vamos ter a pluralidade de templos de rara beleza artística, ricos e imponentes retábulos, conjuntos de esculturas as mais belas de uma linha barroca, coleções ricas de alfaias etc… Foi um mal necessário que veio incentivar aos irmãos brancos, negros e pardos, a oferecerem tudo para o brilho do culto.

Na Ordem Terceira de Penedo a discriminação racial foi uma marca, pois, aquela organização se constituía como uma elite social. Seguem transcrições importantes encontradas no Livro de Tombo:

“P. 5 v. — Discussão acre causou há pouco a apresentação de um candidato que é de cor e sendo expungida esta cláusula pelo Governo Imperial no ano de 1855 de 30 de maio, mandando suprimir no art. 2° o seguinte: “fica entendido que é condição essencial a limpeza do sangue tão recomendada no Capítulo segundo da Nossa Santa Regra sem estas formalidades ninguém poderá ser admitido” e não havendo base na regra nova, dada por Leão XIII não deu-se lugar para dito qualificativo excluinte do nosso Regulamento — Art. 19″.

“Pág. 8 — O Recém-Eleito Provincial Frei Damião, entre os dias 29 de setembro e 6 de outubro, recebeu em audiência particular os que não deram seu consentimento ao recebimento d’um candidato de optimas qualidades morais, inferior como diziam por não ser descendente de paes livres em cujas veias corria não o sangue da raça branca. O Prelado deu apoio ao ingresso do candidato”.

Igreja dos Martírios, em Maceió, no inicio do Século XX

Igreja dos Martírios, em Maceió, no inicio do Século XX

Julita Scarano em — Escravidão e Devoção — nos dá informes importantes para entendermos essa situação de rivalidade entre Ordens III, Irmandades e confrarias: “O branco cria o que podemos chamar “associações de altar-mor“, construindo as igrejas mais ricas, ao passo que os pardos e negros ocupam ora os altares laterais, ora as igrejas situadas em lugares de menor destaque no aglomerado urbano”. “Logo que fosse possível os irmãos do Rosário tratavam de construir as suas ermidas, para com isso saírem da dependência dos brancos — pág. 31″. “Se a princípio, a mais importante irmandade de brancos foi a do Santíssimo Sacramento, mais tarde viu-se superada pela Ordem III do Carmo e de São Francisco“. “As Irmandades de brancos congregavam as pessoas mais conceituadas do local e eram bastante “fechadas“, não permitindo sem sindicância a admissão de um branco nascido no Brasil, pois exigiam que seus elementos fossem considerados de sangue limpo“.

É importante voltar com as informações de Eduardo Etzel no seu livro — O Barroco no Brasil à pág. 77 —: “de início, os povos se reuniam em dois polos distantes; os brancos, nas irmandades do Santíssimo Sacramento e os pretos, nas irmandades de Nossa Senhora do Rosário, muitas vezes cognominada “dos pretos“. Com o crescer da população surgiram os mestiços — os pardos — que foram aos poucos assumindo grande importância na vida religiosa das Minas e constituíram em associações geralmente sob à invocação de Nossa Senhora das Mercês ou Nossa Senhora do Amparo“.

Igreja de São Gonçalo Garcia dos Homens Pardos, em Penedo em 1920

Igreja de São Gonçalo Garcia dos Homens Pardos, Penedo, em 1920

Não será demais voltar com as informações de Julita Scarano em sua obra citada à pág. 145: “As Irmandades do Rosário tiveram papel importante na integração do homem de cor e podemos dizer que este, sobretudo quando escravo, pode exercer, por meio da confraria certas atividades… Desse modo, a confraria era praticamente a única instituição aberta ao homem de cor, dentro da legalidade, onde, esquecia a sua situação de escravo, poderia viver como um ser humano. De fato, um dos aspectos mais importantes dessa associação será o de dar dimensão humana ao escravo negro. Apesar de pela lei o cativo ter posição comparável à das bestas e ser em inúmeras circunstâncias tratado como tal, dentro da confraria ele já era alguém“.

A Igreja, mesmo envolvida por muito tempo pelo poder temporal e suas exigências desumanas, foi de fato e de direito uma presença na valorização do homem de cor, ensejando-lhe espaço nas igrejas e participação ativa nos sacramentos junto aos brancos.

Afirma, com muita propriedade o Mestre Manuel Diégues Júnior em — Etnias e Culturas do Brasil: “É com o cristianismo que se verifica a unidade social da população “portuguesa”. O Mestre Diégues referindo-se a Nau Catarineta diz: “relembrem-se, como bem expressivo de como se juntam, nessa literatura, o cristianismo e o mar…”

Parodiando o Mestre eu diria: vejam os rios interiores do Brasil, caminho líquido que levou às novas paragens a mística do amor do Evangelho, fazendo cristãos pelo Batismo e os alimentando com o Pão da Vida, a Eucaristia”.

Senhor com seus escravos. Foto de Militão Augusto de Azevedo

Senhor com seus escravos. Foto de Militão Augusto de Azevedo

Concluindo essas considerações, pois, a seguir irei transcrever vários Compromissos de Irmandades de Alagoas, onde o negro era renegado, gostaria de dar um testemunho pessoal da rivalidade da Ordem III com a Irmandade do Santíssimo Sacramento.

Pelo Direito Canônico as Ordens III tinham nas procissões lugar de precedência, formando junto ao pálio. Em certa procissão de Corpus Christi em Penedo, eu estava presente como terceiro. Já estava formado o cortejo processional na praça da Catedral. Um certo vigário novato, ignorando o direito que cabia a Ordem III, chegou ao ouvido do Bispo, o segundo da Diocese, e disse que a Ordem III não podia formar aonde estava, pois, cabia à Irmandade do Santíssimo Sacramento a precedência. Imediatamente o Bispo mandou chamar o frade Comissário e ordenou que a Ordem III cedesse o lugar. Houve de nossa parte uma insatisfação, todavia, o frade muito prudente controlou a situação. No dia seguinte, o Comissário toma do Direito Canônico ou outro documento da Santa Sé e vai a Palácio para um entendimento com o Pastor. Após um longo diálogo, o Bispo reconheceu o seu engano e, humildemente, pediu desculpas do incidente. Na reunião seguinte da Ordem, recebemos a visita honrosa do Pastor para de público perante à comunidade pedir desculpas.

Trago à tona este fato por mim vivido para mostrar que em Alagoas a situação era semelhante — rivalidade entre as irmandades, discriminação social e racial.

* Capítulo do livro Religião e Racismo, de Ernani Méro, Maceió, 1983.

1 Comentário on Religião e Racismo: a discriminação racial em Alagoas

  1. Francisco Sales // 15 de março de 2016 em 08:55 //

    Ernani, nos legou com musical religiosidade sua visão sobre a História de Alagoas
    Toda reverência a esse grande penedense

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