O buraco do Besouro
Félix Lima Júnior descreve o clima político em Alagoas no governo de Gabino Besouro e sua fuga de Maceió
Félix Lima Júnior*
No governo da jovem República dos Estados Unidos do Brasil, crismada meio século depois como República Federativa do Brasil, nome que conserva, estava, em 1894, um bravo soldado alagoano, Marechal Floriano Peixoto, herói da campanha do Paraguai, país que atravessou, espada em punho, no Passo da Pátria às barrancas do Aquidabanigui, onde encontrou, naquela manhã ensolarada de 1° de março de 1870, o cadáver do ditador Francisco Solano Lopez, abatido, momentos antes, por um ferimento de lança do cabo Chico Diabo e uma bala de revólver ou de espingarda de um oficial ou soldado das forças do General Câmara, futuro Visconde de Pelotas.
Dominada a revolta da Armada Nacional, comandada pelos almirantes Custódio de Melo e Luís Felipe de Saldanha da Gama, iniciada em 6 de setembro de 1893 e terminada em 13 de março de 1894, o futuro Marechal de Ferro procurou resolver alguns casos políticos.
Um deles foi no seu Estado natal. O que ocorria e ocorreu em Alagoas, politicamente falando, naquele fim de século — politiquice nojenta, infâmias, fuxicadas que só prejudicaram a nobre terra de Tavares Bastos — não deve ser citado aqui. Floriano, havia se indisposto com o dirigente da terra e tratou de o hostilizar, apoiando os inimigos políticos e pessoais do mesmo.
Quem era esse governador? Gabino Susano Besouro, alagoano de Penedo, Major de Engenheiros do Exército, e igualmente veterano das lutas dos banhados e matas da terra guarani, para a qual partira como Voluntário da Pátria, era oficial competente, disciplinado e disciplinador, à altura de seu posto, além de homem honesto e criterioso. Somente um defeito pode ser apontado nesse ilustre conterrâneo: era violento e pouco inclinado a perdoar as faltas alheias.
Seu governo foi dos mais atribulados. Inimigos políticos e pessoais criaram toda sorte de dificuldades ao bravo soldado e foram além: desrespeitaram sua digna e Exma. consorte. Ciente de que eles estavam preparando um movimento armado para a sua deposição, Besouro tratou de organizar a resistência no Palácio do Governo, o antigo, na rua Barão de Anadia, do qual há uma fotografia na página 25 do Indicador Geral do Estado de Alagoas, de 1902, prédio que foi demolido há cerca de 40 anos, sendo no terreno construído o grande edifício do IPASE. Aumentou o efetivo do Corpo de Segurança sempre conservado em meia prontidão, bem armado e melhor municiado.
Gabino fora eleito governador, tendo como Vice o Barão de Traipu (Cel. da Guarda Nacional Manoel Gomes Ribeiro) em 20 de fevereiro de 1892. Tomou posse em 2 de março do mesmo numa sessão do Congresso que mais parecia um velório de defunto pobre. Seu retrato pode ser visto na página 281 do Indicador Geral do Estado de Alagoas, de 1902.
Seus adversários recorreram, honestos e desonestos, a processos sujos e sórdidos, para atrapalhar a administração progressista e de larga visão, que tanto beneficiou o Estado. Conseguiram desertasse grande número de soldados do Corpo de Segurança, sendo os mesmos imediatamente incluídos no 26° de Infantaria do Exército, aqui organizado nos últimos meses do regime monárquico.
Depois de desordens que se sucediam nas ruas da capital, inclusive entre matriculados da Capitania dos Portos e soldados da milícia estadual, contingentes do 26° capitaneados pelo Tenente Honorino de Almeida, alarmaram as famílias e criaram ambiente de terror na cidade. Na madrugada de 16 de julho de 1894, depois de um dia de alarmes e incidentes graves. Besouro, vendo aproximar-se do Palácio pelotões de praças daquela unidade do Exército para depô-lo e sem poder oferecer resistência, pois até alguns soldados da guarda do Palácio haviam abandonado seus postos, passou o exercício do cargo ao Coronel (da Guarda Nacional) Macário das Chagas Rocha Lessa, alagoano de Coruripe, onde era proprietário agrícola, e presidente da Câmara dos Deputados.
Mandou abrir um buraco no muro dos fundos do Palácio e foi, com a família, para a residência do seu colega de farda, Tenente Coronel Emídio Dantas Barreto, que, no sul do pais, lutava contra os federalistas.
Narra o polígrafo Moreno Brandão, nas páginas 197/198, do livro Centenário da emancipação de Alagoas, Maceió, 1917:
“Recrudesceu a agitação: os conflitos se sucediam com uma frequência assustadora; as primeiras horas da noite, em Maceió, eram de terror para as famílias.
Magotes de soldados de linha, capitaneados pelo Tenente Honorino de Almeida, percorriam as ruas alarmando tudo.
Reinava a intranquilidade, predominava o desassossego.
Afinal raiou o dia 16 de julho em que, depois de alguns conflitos, começou a defecção da força estadual, milícia provida de bom material bélico e na qual demasiadamente confiara o dr. Gabino Besouro.
O dia passou-se todo em continuo sobressalto. Pelas ruas estavam sentinelas perdidas, muitas delas com caras patibulares, aguardando a marcha do 26º batalhão para o palácio governamental, em cujas janelas estava acumulada uma enormidade de cunhetes de balas previamente abertos. Não houve, porém, a esperada resistência do dr. Gabino Besouro.
Na madrugada de 16, s. exc. passou o exercício do cargo, que abandonou, ao Presidente da Câmara dos Deputados, coronel Macário das Chagas Rocha Lessa“.
Acreditei, por muito tempo, por informações colhidas ou observações feitas, que o brioso militar e operoso governador havia mandado abrir um buraco no muro que separava o quintal do Palácio do prédio térreo, na Ladeira então chamada do Tesouro, a qual já tivera o nome de do Calabouço e há mais de meio século é denominada, oficialmente, Pinto Martins, em homenagem a um aviador cearense realizador, nos anos 20, de um raide dos Estados Unidos ao Brasil. Dito prédio ficava no lado direito do palacete do Barão de Jaraguá, onde estão, há alguns anos, o Arquivo Público e a Biblioteca do Estado. Nele, que foi demolido há 4 ou 5 anos, — escrevo em 1979 — funcionava o Restaurante Colonial. Verifiquei, porém, estar equivocado.
O buraco não foi feito no muro do prédio aludido por não confinar com quintal do palácio. Nem no do palacete, talvez por não manter o Governador boas relações com a família do Barão de Jaraguá. Maceió, naquela triste época, era a capital da intriga. Da mentira, da infâmia, das perfídias e das cartas anônimas em se tratando de política, ou melhor, da nojenta politiquice que nos envergonhava. Era feroz, desapiedada, a briga não somente entre os filiados às agremiações partidárias como entre as famílias.
Abriram a passagem no muro da casa térrea, de biqueira, porta e duas ou três janelas, no lado esquerdo do Palacete, na Praça Pedro II, frente à Catedral, edifício que eu ainda alcancei, com dois outros idênticos entre o Palacete mencionado e a velhíssima casa grande do engenho Massayó, sendo demolido na segunda ou no início da terceira década deste século. Dele, creio, há fotografia no Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas.
Nela residia a família do Tenente Coronel Emídio Dantas Barreto, depois General, Ministro da Guerra e Governador do Estado de Pernambuco, então no Rio Grande do Sul combatendo os federalistas. A família desse oficial superior do Exército recebeu carinhosamente o Major Besouro, sua virtuosa esposa e distinta filha, tão alagoana que se chamava Anadia.
Nessa casa que foi demolida com as outras duas, para a construção do Parque Hotel e da agência do Bank of London & South America, Ltd., residiu longo tempo, nos anos 10 e 20, médico distinto, figura destacada de destacada família conterrânea — dr. Luís Joaquim da Costa Leite. Seu filho Ignácio, meu prezado amigo e médico estimado, residente no Rio de Janeiro, quando aqui esteve pela última vez, há 3 ou 4 anos, visitando parentes e amigos, confirmou saber que Besouro se refugiara na casa citada, de certo tendo ouvido tal informação do seu genitor.
Os inimigos do Governador deposto, alegres, satisfeitos com o mal que conscientemente haviam feito ao Estado, cantavam, já sem receio das espadas do pelotão de cavalaria do Corpo de Segurança:
Não tenho medo da onça,
nem do ronco que ela tem.
O Besouro também ronca,
Vai-se ver não é ninguém…
Afinal, por onde deveria sair um besouro? Por um buraco, naturalmente…
*Publicado na Revista da Academia Alagoana de Letras, Ano V, Nº 5, de dezembro de 1979.
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Nota da Editoria do História de Alagoas
Respondendo ao discurso do deputado federal alagoano Manoel Joaquim de Mendonça Martins (1915-17; 18-20), publicado no Diário Oficial de 1º de janeiro de 1918, o desembargador pelo Rio de Janeiro, Guilherme T. C. Cintra enviou correspondência ao jornal Lanterna (RJ) se referindo à informação sobre a fuga do governador por um buraco como uma invencionice, uma pilhéria e afirmou que o general Gabino Besouro não contestava isso por altivez e desprezo, e “por ter a consciência de homem de bem que sabe cumprir com o seu dever”.
Se propondo a “restabelecer a verdade”, o desembargador afirmou ser “conhecedor de como as coisas se passaram” e esclareceu que Gabino Besouro passou o governo para o seu substituto legal, o presidente da Assembleia Legislativa (então Câmara dos Deputados), “serena e calmamente e com as formalidades em tais casos exigidas e em presença de várias pessoas”, além de, no momento, expedir seus últimos atos como governador, um deles o da exoneração do oficial do Corpo de Polícia, seu ajudante de ordens.
“Quem assim passa um governo não tinha necessidade de fugir pelos fundos”, declarou o magistrado ao invocar o testemunho do desembargador Adalberto de Figueiredo.
Para ilustrar os fatos, Guilherme Cintra citou trechos de uma carta assinada por Gabino Besouro, datada de 2 de agosto de 1894 e dirigida ao senador Antônio Azeredo, publicada no Diário de Notícias nessa mesma data.
O governador deposto narrou que foi avisado que haveria um ataque ao Palácio e ao Quartel da Força Policial e que “barris de pólvora, pertencentes a particulares, haviam sido retirados do depósito público para municiar quatro antigas bocas de fogo de bronze; e, então, dispus por meu turno os elementos que podia dispor para defendê-los”.
Disse que por volta das 19h, Gabino Besouro foi procurado pelo juiz seccional, por meio do seu escrivão, que lhe propôs uma reunião no edifício do Telégrafo ou na casa do emissário. Respondeu que aceitava conversar, mas preferia que o local fosse mais próximo do Palácio, por motivos de saúde. Indicou a casa do desembargador Faro de Mendonça, em frente ao Palácio.
Assim aconteceu o encontro. O governador externou então que estava mesmo determinado a passar o governo ao seu substituto legal e que já havia informado isso ao governo Federal. Mas exigia que fosse respeitada a autonomia do Estado e garantida a não intervenção perturbadora do funcionalismo federal.
Agia assim por causa de sua saúde e “para facilitar sem abalo a solução daquela crise, que havia muito tempo esperava”.
O juiz então pediu que ele passasse o governo imediatamente. Besouro respondeu que o Palácio estava sob a ameaça de um ataque e que ainda esperava a chegada do general comandante do distrito militar, por indicação do ministro da Guerra.
Houve o impasse e Gabino explicou que estava se defendendo e que dele não partiria nem um tiro, a não ser para responder a outro tiro.
Às 2h da manhã uma comissão foi ao Palácio para fazer novo apelo. Era composto pelo mesmo juiz, por seu pai, o coronel Santa Cruz, pelos desembargadores Adalberto de Figueiredo e Tiburcio Valeriano, este presidente do Tribunal de Justiça.
Dr. Adalberto argumentou que era preciso evitar o derramamento de sangue e que o governador não devia resistir. Gabino respondeu que esse apelo deveria ser dirigido ao que ameaçavam atacar o Palácio. Ele estava somente se defendendo, cumprindo seu dever como governador.
O dr. Adalberto voltou a argumentar e disse que os amigos do governador também corriam riscos de vida se acontecessem os ataques da “força e de funcionários federais”. Ao saber que seus amigos estavam com suas casas sendo vigiadas e alguns deles já recebendo ameaças, Gabino Besouro resolveu então passar o exercício do governo para o presidente da Câmara dos Deputados, que foi chamado ao Palácio para receber o poder e ouvir o governador dizer que era necessário manter o governo legal e que se afastava sem renunciar.
Logo depois, o deputado Macário Lessa foi coagido a não tomar posse. Comunicou isso ao governo Federal, pedindo garantias constitucionais, sem resultados. As ameaças terminaram por impedir também que os outros substitutos legais o substituísse.
Em nova correspondência ao Diário de Notícias, publicada em 17 de agosto de 1894, Gabino Besouro reafirma:
“O que posso afirmar é que o presidente da Câmara dos Deputados do Estado de Alagoas recebeu, em pessoa, no gabinete do palácio do governo, o exercício do cargo de governador, que lhe passei em presença do juiz seccional, dos desembargadores Adalberto Figueiredo e Faro de Mendonça e outras pessoas, e, o que mais é, na presença do próprio presidente tribunal superior dr. Tiburcio Valeriano da Rocha Lins, que no telegrama de 18 veio dizer ao sr. ministro da Justiça que os substitutos legais do governador não quiseram assumir o exercício”.
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