Sebastião de Abreu, que morreu de amor

Tornou-se solitário, prisioneiro no casarão da Rua Primeiro de Março, onde encontrou a ampará-lo a velha e transbordante bondade do professor Agnelo Barbosa.

Beco da Lama em 1908, atual Rua Dr. Pontes de Miranda, local onde hoje está construído o Edifício Breda

Antônio Guedes de Miranda

Em 1908, conheci Sebastião de Abreu, no último domingo de maio.

Monsenhor Vieira, bela compleição de sacerdote, era um fervoroso hiperdúlico.

Os trinta e um dias de maio faziam-no exultar de entusiasmo e de fé.

A igreja do Livramento enchia-se literalmente dos melhores da sociedade católica de Maceió. Os altares transflorejavam trescalando a rosas e angélicas. O templo resplandecia.

Guedes de Miranda era reconhecido como um orador notável

Monsenhor Vieira pronunciava os seus ferventes louvores à Virgem, em discursos lidos, recitando no início a oração de São Bernardo.

A turma de intelectuais comparecia assiduamente, para fazer elegância e flerte.

Nesse domingo, comparecemos logo cedo. Os jornais haviam anunciado que o Cônego Machado ia pregar.

O meu grande amigo chegara de Porto Calvo, precedido da fama merecida de grande orador sacro.

Na igreja, já se encontrava Orlando Araújo, rodeado do grupo acadêmico, quando se aproximou Sebastião de Abreu. Alto, espadaúdo, no rosto trigueiro faiscavam uns olhos prescrutadores e irônicos.

Usava costume de jaquetão marrom e chapéu de niilista espanhol. À lapela, um enorme crisântemo.

Orlando fez a apresentação:

— Sebastião de Abreu, poeta e cronista; Guedes de Miranda, acadêmico de Direito.

Poeta Sebastião de Abreu

Poeta Sebastião de Abreu

Cumprimentou-me distraidamente, dando-me a apertar a mão ampla e forte.

O Cônego Machado assomou ao púlpito. Um silêncio expectante imobilizou-nos.

Foi arrebatador na postura e na eloquência, que lhe borbotava da boca inspirada.

Nessa noite a Virgem teve o seu Lacordaire para cantar-lhe a cerúlea beleza e os poderes imensos da Rainha do Mundo.

Na terça-feira seguinte o “Gutemberg” publicou uma linda crônica de Sebastião de Abreu, enaltecendo a fecúndia do padre.

Machado pediu-me para agradecer a Sebastião.

Escrevi ao poeta uma carta em estilo nefelibata, empolada, repleta de vocábulos preciosos, que eu catava em Cruz e Souza, Euclides da Cunha, Coelho Neto e Abel Botelho.

Passados alguns dias Sebastião veio ver-me no Colégio Quinze de Março, onde eu era censor.

Eu esperava a visita de Sebastião, e para deslumbrá-lo preparei uma frase de efeito inspirada na “Correspondência de Fradique Mendes”. E ataquei:

— Os seus versos são crisálidas de ouro, que irrompendo do cinzel de Cellini, vão fundir-se na poeirada Cósmica das galáxias.

Sebastião esboçou um sorriso de mofa.

— Você fala como escreve…

Fazia certamente alusão à carta alambicada que eu lhe havia escrito.

Emudeci, encalistrado com o sarcasmo do poeta.

Sebastião compreendeu o meu desapontamento e procurou desculpar-se.

— Bem, adeus. Não se aborreça comigo. E desceu célere a escada.

— Que besta, disse-lhe às costas.

Mas nas vésperas de S. João, à tarde, Sebastião veio buscar-me para uma festa, em casa do Coronel Roberto Machado, na Levada.

— Vim buscá-lo, e você tem que vir. Vai distrair-se, garanto.

Saímos ao cair da noite. As ruas da Levada, ardendo nas labaredas das fogueiras, pareciam um acampamento de bárbaros festejando vitória.

Um incêndio de ponta a ponta.

Quando chegamos já a festa rolava animada.

Dançava-se o coco ao ritmo do ganzá. Nos intervalos, adivinhações na clara do ovo, as sortes em quadrinhas chistosas e a canjica, as espigas de milho assadas na fogueira, e pamonha.

Saímos à meia-noite.

O poeta, todos notaram, permaneceu calado, no terraço, consumido por uma indisfarçável tristeza.

As fogueiras agonizavam agora sem brilho, no braseiro.

— Que tem você? Indaguei. Não me respondeu, mas vi que chorava.

— Por que se aflige tanto?

O poeta contou-me tudo. Toda a amargura do seu coração ferido pelo ciúme.

Fora abandonado e amargava o fel da traição.

É dessa dolorosa fase de sua vida, e dolorosa foi toda ela, o soneto “Cartas“:

“As tuas cartas, flor, — os teus segredos —
Sei com desvelo e amor sempre guardá-las:
— Mentiras que disseste nos silvedos
E outras soltas à toa pelas salas.

Falam das ilusões e dos teus medos,
Naquela graça com que um sonho embalas,
Dos idílios à sombra de arvoredos…
Logo, é justo que devas conservá-las!

São as flores do sonho desfolhadas…
E, embora sejam simples e erradas
Dizem, contudo, do que em mim tu leste.

São a esperança morta de um noivado,
E inda tem todo o aroma do passado…
São mentiras gentis que me escreveste.”

Tornou-se meu amigo. Aos domingos dávamos longos passeios pelas ruas sujas da Levada, bairro que ele adorava.

Comovia-se com a miséria que se lhe deparava — crianças esqueléticas brincando sobre montões de lixo; velhos esquálidos curtindo fome, a fumar cachimbo, desconsolados, à sombra dos beirais, a pobreza extrema de uma população esfarrapada e faminta.

— Isto tem que acabar. A vida não deve ser esta coisa feia, inestética, essa injustiça, esse clamor surdo e tenebroso. E dizer-se que Cristo morreu para salvar a humanidade! Salvar de quê? De fome, dessa catástrofe imensa em que rolamos?

Sebastião nessa época não largava Zola, devorando-lhe os livros. Lia também Tobias.

De certo se referia ao soneto “Ignorabimus” do poeta sergipano. Em julho segui para o Recife, deixando Sebastião no meu lugar no colégio.

Escreveu-me, apenas, uma carta, remetendo-me este soneto:

“NO CAMPO

Aqui, no seio dos viçosos prados
Onde espontâneo viridece o pomo,
Enfim repouso solitário, como
Quem descansa liberto de cuidados.

Apraz-me o aroma dos vergéis amados
Onde tristezas e prazeres domo,
E sensações consoladoras, tomo,
Ao cantar dos “ferreiros” nos cercados!

Gosto mesmo do cálido amavio
Vindo da fronte do moital sombrio
Que a luz do estio volutuosa cresta;

De ver os bagos de uma espiga loura
E a majestade desse sol que doura
A coroa virente da floresta.”

Sabia que Sebastião se retraíra, fugindo dos amigos. Tornara-se solitário, prisioneiro no casarão da rua 1º de Março, onde encontrou a ampará-lo a velha e transbordante bondade do Professor Agnelo Barbosa.

Regressei a Maceió, em fevereiro do ano seguinte.

O poeta recebeu-me com as expansões de uma estranha alegria.

— Você veio na hora. Preciso muito da sua presença.

A sua voz tremia, sacudida por forte emoção. Estava mudado. Perdera o garbo, aquela firmeza de pensamento, que o fazia desdenhoso.

Não usava mais os perfumados ramalhetes de jasmins entretecidos pelas mãos morenas da bem amada. Emagrecera.

Não lia mais Zola, nem Flaubert.

Os românticos, a quem ele tanto ridicularizava, eram agora os preferidos.

Quase não dormia. O palor da aurora encontrava-o, vez por outra acordado, a ler em voz alta, desvairado, Musset e Castro Alves.

— Que ordinárias! Que pérfidas!

Alta madrugada, e ele ainda não havia dormido.

— Acordei com a apóstrofe.

— Quem! perguntei.

— Quem há de ser? As duas cretinas — George Sand e Eugênia Câmara. E atirou ao chão o livro que estava lendo.

Olhei espantado. Tremia o meu amigo, ardendo em febre.

Aniquilado pelo esquecimento da “Única“, o poeta era um homem perdido. Nenhum cuidado com a saúde, expondo-se à friagem das madrugadas, de janelas abertas, buscando sôfrego a morte.

— Você sabe que Plínio aceitou a tese do suicídio? A vida é a coisa única que realmente nos pertence. Podemos dispor dela como quisermos. Vargas Vila considerava o suicida um forte. Você se recorda da teoria dos estóicos a respeito do suicídio: “Mori licet cui vivere non placet“.

A um amigo escreveu certa vez: “Se chegar, nas asas do boato, a notícia de que acabei com a vida, não duvides“.

Nessas noites de insônia e desespero, escreveu “História de Amor“, em que a ironia, o despeito, a piedade e o ódio flamejavam, ardendo no fulgor da rima impecável.

Esgotou-se-lhe o coração nestes últimos versos de renúncia e perdão:

“Desse engano do afeto, o triste enredo
Nestas quadras sem vida, ai! eu não conto
Pérfida Isaura, flor, não tenhas medo
Essa história de amor aqui faz ponto.”

Não foi só a “História de Amor” que fez ponto. Nas primeiras horas de 21 de fevereiro, a vida tormentosa do poeta do “Ângelus” findou, aos vinte e seis anos.

Zé Pereira” zabumbava, à luz radiosa daquela manhã aziaga, a alegria dionisíaca do domingo de Carnaval.

*Publicado originalmente como o capítulo XXV do livro “Eu e o Tempo”, de Guedes de Miranda (Departamento Estadual de Cultura – 1967) e reproduzido na Revista da Academia Alagoana de Letras, nº 14, de 1988.

DA EDITORIA DO HISTÓRIA DE ALAGOAS

O poeta Sebastião Rodrigues de Abreu nasceu em Maceió no dia 20 de janeiro de 1883, onde faleceu no dia 21 de fevereiro de 1909. Era filho de Felício Santiago de Abreu e Epifânia de Pontes Abreu.

Frequentou a escola primária e com 13 anos estreou no Almanaque Alagoense. Autodidata, conseguiu firmar nome na imprensa e nos círculos intelectuais.

Ingressou nos Correios, porém por pouco tempo, tendo sido afastado por abandono de emprego.

Seus versos, compostos entre 1906 e 1909, foram reunidos por sua irmã Rita de Abreu (poeta mais conhecida como Rosália Sandoval) e publicados: Angelus: Versos, Rio de Janeiro: 1951.

Patrono da Cadeira 25 da AAL. Redigiu O Madrigal (1899) e colaborou em A Miragem (1900), ambos de Maceió.

1 Comentário on Sebastião de Abreu, que morreu de amor

  1. Isso engrandece a história da nossa terra adorada

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