Velhos Pregões

Vendedor de Mel na Rua do Sol no início do século XX

Antônio Saturnino de Mendonça Júnior

*Publicado no livro Jornal de Alagoas de 1949.

Na manhã dominical, manhã azul, de um azul de porcelana, os sinos tangem. Lá embaixo, a lagoa cintila como um espelho caído. O pregão monótono do engraxador ressoa na rua: “quem tem sapatos para engraxar? Vai passando o engraxador”.

O pregão do engraxador é monótono como a música árabe, mas, ao ouvi-lo, a flauta encantada de um pastor vai tangendo o manso rebanho das lembranças ao longo dos meus olhos, como diria Aloisio Branco. Velhos pregões de Maceió ressuscitam na acústica da memória, reconstituindo ambientes que se esbateram melancolicamente nas brumas do passado.

Escritor Antônio Saturnino de Mendonça Júnior

A velha rua do Açougue, tortuosa e suja, com as suas inúmeras sapatarias, se fixa, por um instante, nas minhas retinas. O velho casarão do Colégio 15 de Março aparece a encher a rua estreita e a figura de mestre Agnelo Marques Barbosa atravessa o meu campo visual.

(Agnelo Marques Barbosa foi diretor de colégio durante mais de cinquenta anos. Morreu pobre. Mas, no seu tempo, os educandários ainda não constituíam uma indústria próspera. E Agnelo Marques Barbosa não tinha mesmo nenhuma vocação para o comércio. Quem o visse, com aquele aspecto austero de domador de feras, não adivinhava o coração mole que ele trazia. Autodidata, como todos os mestres antigos, Agnelo resolvia os problemas da adolescência por processos pessoais que não se embebiam em doutrinas de Freud nem em lições de Adler…)

Na rua do Açougue, o casarão do colégio. Dentro, uns quarenta rapazes de todas as regiões do Estado. A maioria composta de filhos de senhores de engenho, rapazes que jogavam bola de meia no dormitório e cantavam cocos ou escutavam as músicas de realejo do atual professor Donizeti Calheiros, neto do diretor do colégio. Muitos deles morreram, como o meu caro Emílio de Maya, sempre trajado de azul marinho e com um eterno sorriso de piedade e ironia a arregaçar-lhe levemente os lábios ou como meu pobre amigo Mario Brandão Maia Gomes, campeão de boxe, grande “conteur“, machadiano por intuição e personagem doloroso de romances trágicos que o destino urdiu impiedosamente. Muitos outros, a vida estragou. Os mais felizes se apagaram numa existência sem relevo, numa cinzenta obscuridade.

De manhãzinha, os pregões começavam. Primeiro era o dos jornais com a sua música triste: — Jornal de Alagoas, Jornal do Comércio e o Estado, importantes telegramas do Rio, um artigo do dr. Pedro Valeriano, a vitória do C.R.B.

(Era no governo Fernandes Lima. Oposição violentíssima. Guedes Miranda, no Jornal do Comércio, escrevia artigos causticantes, no estilo ático do grego exilado na província. Leite e Oiticica Filho, no Diário da Manhã secundava o tribuno alagoano. Acima de todos, porém, o velho Pedro Valeriano, como um tigre acuado em Porto Calvo, produzia panfletos contundentes. Do outro lado, o Jornal de Alagoas, de Luiz Silveira, e o Estado de Alagoas, de Povina Cavalcante e Tito de Barros, defendiam a situação com uma habilidade de mosqueteiros, esgrimindo num estilo que ia do artigo de fundo adjetivoso e repolhudo à ironia florentina. A oposição era, porém, mais numerosa, pois à tarde circulava o Correio da Tarde, de Costa Bivar e, em seguida, A Noite, de Balthazar Mendonça.

Ainda hoje não posso compreender como, naquele tempo, seis jornais diários podiam manter-se em nossa cidade).

Quituteiras na Praça do Montepio em 1905. Foto de Luiz Lavenère Arquivo Nacional

Depois vinha o menino da tapioca: Êtapio…ca. A última sílaba perdia-se. E vinham, a seguir, outros pregões. Até peixes se apregoavam, os peixes que hoje são raros como pérolas. O mel do Hortelã, o mel de engenho que adoçava, no colégio, a saudade que a gente sentia da bagaceira, a bagaceira do vale do Camaçari ou do Manguaba, do S. Miguel ou do Camaragibe, do Mundaú ou do Paraíba, sempre presente nas conversas do recreio.

E, vocês, rapazes e moças daquele tempo se lembram ainda do pregão mais bonito de Maceió, daquele inesquecível: mas quem quer comprar, sedas, sedas e mais sedas na Loja Progresso de Virgílio Cabral? Que fim teria levado aquele preto, tipo de tenor desviado para a propaganda comercial?

Que fim levastes velhos pregões de Maceió, belos pregões que ressoam neste instante nos meus ouvidos trazidos pela flauta encantada de um pastor? E vocês também rapazes que jogavam futebol de bola de meia e torciam no campo do Regatas, estudando pouco o latim e lendo muito os poetas e os romancistas que ninguém mais lê? Onde andam vocês que não veem ouvir o pregão monótono do engraxador nesta reluzente manhã de domingo, manhã azul, de um azul transparente em que a lagoa cintila e os sinos tangem como pregões da fé, nos velhos templos de nossa amável cidade?

3 Comments on Velhos Pregões

  1. Manoel Fernandes Neto // 11 de novembro de 2024 em 21:15 //

    Minha genitora CARMÉLIA DE LYRA PEREIRA, nascida 21 de março de 1918, Jun queiro Alagoas me passou o PREGÃO : MAS QUEM QUER COMPRAR, GRANDES SORTIMENTOS E LIQUIDAÇÕES DE SEDAS, MAIS SEDAS DA RUA DO COMÉRCIO, VIRGILIO CABRAL !!!!! AINDA HOJE, SEI FALAR EM BOM TOM…..PASSANDO DE GERAÇÕES…..ISSO É MARAVILHOSO !!

  2. Claudio de Mendonça Ribeiro // 12 de novembro de 2024 em 15:47 //

    Muito grato, prezado Ticianeli. Tempos idos e vividos, que não voltam mais.

  3. Paulo José Silva Valença // 13 de novembro de 2024 em 22:25 //

    Que texto saboroso! Seis jornais diários numa Maceió proviciana, isso é de deixar saudade e provocar espanto!

Deixe um comentário

Seu e-mail não será publicado.


*