A Rua do Açougue transforma-se

Manuel Diégues Júnior identifica as transformações ocorridas em 1938 na via que deu origem à Av. Moreira Lima, no Centro de Maceió

Rua 1º de Março, antiga Rua do Açougue e atual Av. Moreira Lima Rua 1º de Março, antiga Rua do açougue e atual Av. Moreira Lima no início do século XX

Manuel Diégues Júnior

*Publicado originalmente no Alagoas Mensário Ilustrado de 1938.

A rua do Açougue (desculpem chamar assim. Não tenho jeito de dizer — avenida Moreira Lima — como não me ajeitava em dizer Nilo Peçanha) está se transformando. Tomando outro aspecto. Outro ar diferente daquele com que a conhecemos há tantos anos. E essa transformação não é propriamente topográfica; é antes, e sobretudo, social. Um novo colorido domina a rua do Açougue. Mas colorido profundamente racial. O tipo da rua de sírios; de sírios gritando, na sua linguagem atrapalhada, para sírios negociando com bugigangas, expondo meias, camisas, bonés; com seus vastos bigodes como que com a volúpia de esconder as palavras erradas que diz em português; esse tipo, tipo no sentido de elemento caraterístico, é que está tomando conta da rua do Açougue.

Uma verdadeira área transição, com a mobilidade do grupo, social e comercial, que se está sentindo apossar-se da rua do Açougue.

Av. Moreira Lima antes da reforma, ainda comas características de quando era conhecida como Rua do Açougue

Não seria de estranhar essa mudança de aspecto social de uma de nossas ruas. Teria de haver certamente pelo próprio sentido de caracterização das áreas urbanas. As cidades têm sua fisionomia própria, o seu caraterístico. E dentro da cidade são as ruas que dão o ar diferencial de cada zona. Que lhe caracterizam a fisionomia: ou os olhos, ou o nariz, ou a boca. Há até cidades a que falta qualquer coisa. Então a rua cobre-se de árvores escondendo-se dentro delas como fugindo ao contágio do visitante. A rua Oswaldo Cruz, no Recife, para citar uma. Mas há outras que se escancaram ao primeiro que aparece para vê-las. Entregam-se toda com um sorriso nos lábios, sem a menor cerimônia. São propriamente as cidades marítimas. A Bahia, por exemplo. Já Pelotas é o contrário; esconde-se dos visitantes, ficando lá longe do porto, entre arvores frondosas e belas como que se agasalhando do frio do sul.

Pois bem, dentro de cada cidade as ruas têm o seu característico. E não há cidade que não tenha sua rua síria. Quase sempre os negociantes são de nacionalidades diversas: sírios, libaneses, turcos, polacos, russos. Mas a população chama genericamente por uma só nacionalidade, quase sempre a mais influente pelo número. E há casos mesmo em que esse nome fica na rua: a dos Judeus, no bairro do Recife. Em S. Paulo chamam mesmo sírios. São os antigos “mascates“, vendedores ambulantes, que vivem de cidade em cidade, até que um dia se deixam ficar numa rua, instalando seu bazar de variedades. Entre nós varia a denominação: ou russos ou judeus, de um modo geral. No Recife chamam turcos os que se espalham com suas gravatas, meias, lenços, vidros de perfume, pelas ruas. Há também os sírios: os que tomam conta de um quarteirão inteiro, de dois, de uma rua toda. A rua do Rangel, no Recife, só tem nome sírio nas tabuletas das casas comerciais.

Esquina da Av. Moreira Lima com a Rua Cincinato do Pinto (do Macena), vendo-se o Beco São José. Atual Casa Cabús

A rua do Açougue está tomando este caráter. Não cheguei a investigar se são mesmo sírios os que estão dando esse novo ar a velha rua do Açougue. O certo é que há mesmo um trecho que não há que ver trecho de casas sírias da rua 25 de Março, em S. Paulo, ou da rua do Rangel: o que vai da esquina da Boa Vista á da Alegria. Os mostruários de bugigangas nas vitrines, as camisas dependuradas, os sabonetes suspensos por cordões, bolsas escolares, brinquedos de crianças, a variação do colorido dos objetos expostos — tudo isso tem um ar profundamente sírio. Um jeito bem caraterístico. Se não exclusivamente sírio, libanês, russo, também. Influência possivelmente de um tronco único: o semita, esse gosto pela exposição, pelas rutilâncias exteriores. Verdadeiro bazar de miudezas faiscando.

E considerando a observação do prof. Deffontaines sobre os sírios de S. Paulo — quando um chega instala-se modestamente, vai prosperando e mandando buscar outros patrícios para vizinhos — não teremos dúvida de que a rua do Açougue está se transformando. Mais até do que a simples visão demonstra. Está mudando a sua roupagem simples, a sua fisionomia deli- ciosa tão alagoana com as pretas vendendo sururu nos tabuleiros. E os peixes fritos — talvez ainda hoje os haja — cheirando e abrindo o apetite do transeunte.

Av. Moreira Lima na década de 1980

4 Comments on A Rua do Açougue transforma-se

  1. Claudio de Mendonça Ribeiro // 7 de novembro de 2023 em 07:34 //

    Prezado Ticianeli, bom dia. Só tenho a te agradecer por publicar reportagens antigas de nossa terra natal. Parabéns.

  2. Glória Velasquez Oliveira // 11 de novembro de 2023 em 10:37 //

    Obrigada meu recordado amigo Edberto Ticianelli. Lembrei de você, Cristina, Horacio, que fazíamos as pesquisas para o Trascol. Forte abraço.

  3. Eliane Maria // 11 de novembro de 2023 em 20:24 //

    Amei ver td essa riqueza, obrigada pela publicação.

  4. Roberto Barros // 12 de novembro de 2023 em 06:16 //

    Parabéns Ticianeli pelo seu belo trabalho

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