Origem monástica da literatura alagoana

Franciscanos no Brasil

Abelardo Duarte

Publicado originalmente no Diário de Pernambuco de 21 de abril de 1957 (Parte I) e de 5 de maio de 1957 (Parte II).

I

MACEIÓ abril

A história de uma literatura há de fazer-se pesquisando-se-lhe as linhas estéticas, verificando-se como se comporta em face dos grandes movimentos do pensamento universal, buscando-se descobrir-lhe as atitudes de independência ou sujeição, as reações ou imitações, tentando-se, em suma, dar-lhe a posição exata que ocupa. Impõe-se, porém, além do mais, a averiguação, antes mesmo de encetar-se a pesquisa de seu comportamento, das condições em que se formou e se manifestou e dos nomes dos que a iniciaram.

Ora a literatura brasileira viu o seu primeiro período — o de formação — assinalado pela ascendência integral do pensamento lusitano. Era, pois, uma literatura colonialista ou de predomínio puro do pensamento português, como mostra Ronald de Carvalho ao traçar as bases da divisão em ciclos da história literária do Brasil. A nossa teria inevitavelmente de sofrer a mesma influência.

Carta de Pero Vaz de Caminha escrita em 1500. Arquivo da Torre do Tombo, Portugal

Qualquer ensaio sobre a formação e o desenvolvimento da literatura alagoana deve, para ser fiel, tomar como ponto de reparo o século XVIII, ou, mais precisamente, os meados deste século, seguindo a boa norma traçada nesses estudos. Embora despontando a literatura brasileira em pleno século XVI, a literatura alagoana viria somente a ensaiar os primeiros passos quando na Colônia já se fazia, há muito, literatura. Batizara-se, aliás, de literatura, o esforço de exaltação da terra e de seus habitantes por parte de cronistas e viajantes. Em verdade, fora essa superestimação das possibilidades do meio e do homem, do “ser da terra”, que recebera as águas lustrais do batismo literário. Fora isso mesmo, sem tirar nem pôr, o que se dera: descrição, a princípio, das gentes e das coisas do Brasil, com vidro de aumento, com excessos de otimismo, numa euforia provocada pelo contato e pelas surpresas de uma terra estranha. Terra ou natureza tropical e lasciva, parecendo aos olhos cúpidos dos viajantes e cronistas um mundo edênico. A essa descrição depois se juntariam as contribuições copiosas — de certas, as melhores — dos catequistas e outros. Porém, a influência lusa se continuaria até o século XVIII, em todos os sentidos literários.

Surgiu a literatura alagoana, como não podia deixar de ser, quando a literatura colonial se expandia já em largos surtos ou remígios; mas apareceu — não se pode evitar de dizer também — retardia. Não foi uma decorrência ou reflexo do que se passara na Capitania de Pernambuco, de que fazíamos parte integrante (é justo lembrar que é comarca desde 1711). Na sede da Capitania, desde cedo, Jorge de Albuquerque Coelho animara, na qualidade de capitão e governador-geral, com liberalidade as letras, a ponto de Bento Teixeira, autor da “Prosopopeia”, brindá-lo com esse poema épico, ao sublime Jorge, iniciando lamentavelmente deste modo, na incipiente literatura colonial, o sistema de louvaminha. Tal não se dera, porém, no sul da Capitania. E só muito mais tarde e tão só por força ou influência monástica que por quaisquer outras, em verdade, apareceu. E foi, a certos aspectos, literatura de fundo religioso, refletindo o ambiente em que se gerou.

As primeiras manifestações do espírito literário nas Alagoas despontam nos claustros, na paz dos conventos da velha cidade das Alagoas, hoje Marechal Deodoro, e do Penedo. Naqueles conventos, criam-se em 1719 — data que “deve ser considerada como um ponto de partida”, no dizer de craveiro Costa —, aulas de Gramática “para os filhos dos moradores, sem estipêndio algum”. E a primeira floração literária alagoana está toda impregnada desse místico perfume da prosa e da poesia sacras. Prosadores e poetas vestem o hábito de São Francisco.

São desse tempo os nomes de eminentes franciscanos ligados às letras, eles os quais o Frei João de Santa Ângela Alagoas, pai da prosa alagoana, embora da obra desse frade se possa dizer, como o saudoso e irrequieto Aloísio Branco, “que é tão alagoana como pode ser inglês, um australiano criado na Alemanha e falando holandês”, conceito que aliás não lhe tira o valor como expressão cultural e fonte de erudição, embora não a coloque evidentemente na situação real de obra literária de cor regional.

Frei Santa Ângela preferiu as altas especulações da filosofia eclesiástica, da teologia, e deixou no volume publicado em Lisboa, em 1754, obra sisuda, no seu bom latim conventual. Distanciou-se daqueles escritores que se deliciaram com as descrições das coisas e da gente do Brasil nos primórdios da literatura colonial. Cultivou também Frei Santa Ângela a poesia sacra, elegíaca. A seu lado, figuraram outros escritores monásticos iniciadores da literatura nas Alagoas. São nomes que temos o dever de relembrar, de tornar conhecidos das novas gerações, especialmente os de Frei José de Santa Margarida de Cortona Fiúza, Frei Joaquim da Purificação, Frei João Capistrano de Mendonça, Frei José de Santa Engrácia Cavalcanti e outros. E o momento é o mais oportuno, quando os franciscanos vão comemorar, neste ano, o tricentenário da Província Franciscana do Brasil (separada da província mãe em 1657).

Franciscanos no Brasil

II

Maceió maio

O papel exercido pelos antigos conventos das Alagoas e do Penedo na formação mental dos alagoanos, já através dos cursos e das aulas de humanidades, começando pela de Gramática, já através das produções desses escritores, poetas e oradores sacros (vale ressaltar a obra de Frei Santa Ângela, considerada a mais importante e que realmente se pôde documentar) deve figurar, sem favor, como marco inicial de nossa evolução intelectual. Se nem todos esses frades eram alagoanos o que sabemos, desempenharam, porém, um papel de relevância no período da nossa formação literária e contribuíram decisivamente para o progresso cultural do nosso meio. Sem esse impulso, nascido da vocação e do amor às letras, demonstrado pelos franciscanos dos burgos das Alagoas e do Penedo, na sublime missão a que se voltaram, muito mais se retardaria o início de nosso desenvolvimento espiritual, porquanto a iniciativa oficial somente criaria as primeiras cadeiras de humanidades, aulas avulsas ou escolas públicas na última década do século — 1799. A iniciativa particular precedeu a ação do governo, arrastando-se esta morosamente por anos a fio. Aulas avulsas oficiais sobre cujo funcionamento se não exercia boa vigilância e cuja supressão ficava ao talento e às vezes de maus governantes. E note-se que as aulas de Gramática dos frades eram absolutamente gratuitas ou como estão fora dito — “Sem estipêndio algum”.

Arte de gramatica da língua mais usada na costa do Brasil, de José de Anchieta, publicada em 1595

Foram assim os nossos precursores, os nossos primeiros homens de letras. Diria melhor de letras sacras. Pois foram todos eles, sem excepção, escritores, oradores e poetas sacros. Frei Santa Ângela tornou-se a figura central deste primeiro período de nossa literatura. No púlpito, deixou fama de grande orador; como se fez igualmente apreciado pelas suas poesias.

Segundo Louretto Couto, Frei Santa Ângela era ao sabor da época um poeta perfeito, “metrificando com grande suavidade e não menos afluência na língua materna e latina, merecendo-lhe esta particular afeto; bebendo os mais recônditos mistérios deste idioma das puras fontes dos mais famosos latinos”.

Entretanto, firmou-se e passou à posteridade o seu nome como autor do ensaio teológico, que é considerado a primeira manifestação da literatura alagoana na prosa e talvez a primeira obra pública por um alagoano, escrita embora em latim e editada em Portugal. Começou pois, a nossa literatura, sem aquele fervor e aquela exaltação dos precursores encantados com as belezas e as delícias da terra. Por aqui, não tivemos livros que nos falassem da opulência do meio, mas apenas poesia e prosa sacras, de que a prosa deste frade cheio de sapiência e de teologia, que escrevia em latim tão simplesmente como comovia, com a sua palavra quente, os fiéis do púlpito do velho convento das Alagoas, é exemplo seguro. Para falar a verdade, não tivemos aqui sequer um reflexo do movimento que se instalara em Olinda, com a chamada escola pernambucana. Quando atrasada se fez conhecida, fê-lo, porém, sem o delineamento e sem os contornos dessa floração literária que agitou a cabeça da velha capitania pernambucana.

É que Olinda, com o Colégio dos padres Jesuítas, desde cedo começara a tarefa de instrução secundária, que entre nós veio recair não sobre os inacianos, porém, sobre os franciscanos, pois não tivemos a oportunidade de contar com Colégio de Jesuítas propriamente dito. Os jesuítas fizeram, além da catequese, obra evangelizadora — obra literária apenas no que se refere ao ensino das primeiras letras. Em Porto Real do Colégio não existiu o colégio de humanidade, como revelou o Pe. Serafim Leite, S.I., mas simplesmente o ensino primário. A expulsão dos jesuítas do território brasileiro não lhes permitiu ampliar, no campo da instrução, o seu largo plano de atividades nas Alagoas. Atividades, todavia, nesse setor, merecedoras igualmente de registro, pois a catequese obrigava-os a fundação de escolas, simplesmente escolas de ler e escrever, cantar, embora não fosse esse grau de ensino o supremo escopo dos inacianos, pois bem mais elevado o era, em verdade.

Igreja Santa Maria Madalena e Convento de São Francisco em Alagoas, atual Marechal Deodoro

Se se estabelecer o estudo da literatura alagoana em ciclos ou fases, vem incidir, pois sobre aqueles frades dos meados do século XVIII, à tete dos quais surge o nome de Frei Santa Ângela a cuja iniciativa se deve a terceiros, quase tudo se cingiu aos arroubos da oratória, à doutrinação religiosa, aos devaneios poéticos. Mas, nem por isso, podem ser esquecidos. E com maiores razões quando a Província Franciscana se movimenta para solenizar os três séculos de suas contas e emancipação. Devemos mesmo, na passagem do tricentenário, prestar à memória daqueles franciscanos as homenagens devidas. Alagoanos de nascimento ou estranhos aqui fixados apenas, todos aqueles frades inclinados à literatura e que iniciaram, na terra alagoana, a história das boas letras, a nossa história literária, precisam não ser olvidado nesse ensejo. Dou a palavra à Academia Alagoana.

2 Comments on Origem monástica da literatura alagoana

  1. Claudio de Mendonça Ribeiro // 12 de setembro de 2023 em 07:42 //

    Imensamente agradecido, prezado Ticianeli, pela publicação desta magnífica matéria.

  2. Otima matéria.

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