A chácara Angélica

Quartel da Polícia Militar e a Chácara Angélica ao lado. Foto do acervo de Alípio Ribeiro cedida por sua filha Cleusa Ribeiro

Félix Lima Júnior

*Publicado no Diário de Pernambuco de 17 de outubro de 1954.

MACEIÓ, outubro – chamava-se chácara Santo Ângelo, em homenagem ao dr. José Ângelo Márcio da Silva, de destacada família alagoana, deputado geral na 16ª legislatura (1876 a 79) e grande influência política da então província.

Localizava-se nos fundos do quartel da Polícia Militar do Estado, onde construíram há poucos anos um posto de gasolina e de reparos de automóveis pertencentes à Importadora Autopeças Limitada. Nela residiu, desde o princípio deste século até quando faleceu em 27 de julho de 1927, o coronel da Guarda Nacional Jacintho Paes Pinto da Silva, comandante daquela milícia, presidente da Sociedade Burocrática, Inspetor do Tesouro do Estado e figura de destaque na sociedade e na política alagoana.

Paes Pinto e a sua chácara representaram no cenário político de nossa terra, o mesmo papel de Pinheiro Machado e do Morro da Graça na política nacional.

Naquele imóvel, reuniram-se diariamente durante muitos anos, figuras de destaque da política, resolveram-se casos, fizeram-se e desfizeram-se nomeações, cavaram-se empregos, escolheram-se candidatos a deputados e senadores, colocaram-se compadres e afilhados em gordas sinecuras. Era muito frequentada também por elementos femininos, pois o cel. Paes Pinto, trajando sempre irrepressíveis ternos de brim branco ou de casimira inglesa (legítima fabricada na velha Albion e não, como presentemente, vinda das manufaturas de São Paulo e do Rio Grande do Sul…), barbeado, perfumado, escolhendo diariamente, e na sua grande coleção, as mais belas gravatas importadas diretamente de Paris, verdadeiro dandy, não era infenso aos encantos do belo sexo. Muito ao contrário, ao que se dizia…

Rua do Comércio no início do século XX em Maceió

Governando Alagoas o dr. Joaquim Paulo Vieira Malta, que escolhera para secretário da fazenda o dr. Antônio Guedes Nogueira, houve entre o último e o cel. Paes Pinto, talvez por questões de ciúme — dado o grande prestígio de que gozava o Inspetor do Tesouro — sério incidente que culminou em suspensão. Na pequena cidade sem vida, sem assuntos, a penalidade imposta ao cel. Paes Pinto, pelo seu superior hierárquico, motivou muitos comentários, muita fuxicada, muito zum-zum-zum. Chico Barbeiro, na sua embolada de fim de ano, não esqueceu o incidente:

O secretário se zangou com “seu” Paes Pinto,
Oh Lelê, mas eu não minto, foi prumode a oposição
O pinto novo já cantava como galo,
Por via do regalo levou sua suspensão!

Suspende, mano, suspende,
Suspende essa suspensão.
Suspende o pinto e o galo,
Capote, peru e pavão!

Durante a Salvação, de 1910 a 1911, os democratas apelidaram o cel. Paes Pinto de Juliana, porque, dizia-se sabia ele grandes segredos políticos, trazendo presos em suas mãos alguns figurões ligados ao Governo e ao partido dominante. Quem já leu O Primo Basílio, do Eça, sabe que Juliana, detentora de um segredo, era a criada de confiança da casa de Jorge e Luiza.

A residência do político também ganhou sua alcunha e passou a ser a Chácara Angélica. À proporção que o ódio a Paes Pinto aumentava, ofendiam-no de todas as formas possíveis. Naquela época negra das mais tristes do nosso Estado, Cordeiro Manso — poeta popular que escrevia uma versalhada incrível, impressa e vendida pelas ruas em folhetos mal impressos —, entusiasmado pelo credo novo, influenciado pelos democratas, ingressou na legião dos insultadores, não sendo esquecido o coronel Paes Pinto:

Dizem que a Juliana
Mandou fazer um baú
Para nele ir embarcado
Dizendo ser sururu.
Mandado pelo Zé Gomes
Para o Barão de Traipu.

Zé Povo gritou na rua:
Conheçam que estão no chão!
Fora, fora a Juliana
Quer seja vestida ou não.
O Zé Gomes da Tribuna
Carregue o seu anelão!

Como consta do artigo “O poeta Cordeiro Manso”, de Théo Brandão, publicado no Jornal de Alagoas de 28 de setembro de 1952.

Em 1913, em dia que não posso precisar, realizou-se um “meeting” político na praça D. Rosa da Fonseca, aproveitando se um motivo qualquer, ou mesmo sem motivo. Tudo servia então de pretexto para reuniões na praça pública, onde os políticos adversários de suas famílias eram ofendidos e insultados sem a menor piedade. Poucos eram respeitados ou poupados.

Quando já se dissolvia o comício às 6h30 da tarde, depois de falarem alguns oradores populares, o sr. Francisco Avelino Cabral sugeriu que se organizasse uma passeata para ir ao quartel da Polícia, manifestar solidariedade àquela corporação. Ideia inoportuna, lembrança fora de propósito, produto da má fé da politiquice reinante, pois o fito era ferir Paes Pinto, que morava junto ao quartel.

Saiu o farrancho pelo oitão da Livramento, praça do Montepio, estacionando aos gritos e insultos em frente à chácara, formando-se grupos debaixo de uns pés de fícus benjamina que já não existem. Resolveram então atacar a residência do adversário, que nela permanecia com sua exma. família, sendo porém recebidos a tiros, pois a casa estava cheia de amigos dedicados, rifle em punho. Um destes escapou de morrer, pois um projetil foi detido pela bolsa cheia de niqueis que conduzia no bolso do colete.

Homem de alta coragem pessoal, sereno não ligando as ameaças de seus numerosos inimigos, saía à rua diariamente, mesmo nos dias mais perigosos, em que os democratas estavam soltos nas ruas, capitaneados por elementos da famigerada Liga dos Republicanos Combatentes, em homenagem a Miguel Omena, caçando os amigos e correligionários do dr. Euclides Malta.

Certo dia, Nelson Jucá, que era seu amigo dedicado, encontrou-o na rua e manifestou a sua estranheza, aconselhando-o a ter cuidado e sair pouco, com certas precauções. Pinto Paes, sem demonstrar o menor temor meteu a mão no bolso interno do paletó. Quando o amigo esperava que ele tirasse uma Colt 32, exibiu apenas uma gravura de santo:

— Estou garantido, Nelson amigo! Essa é a minha protetora Santa Rita dos Impossíveis. Ninguém ousará tocar em mim!

E assim aconteceu. Jamais foi ele ferido ou agredido fisicamente.

Nomeado Diretor Geral dos Correios, tomou posse — ao que me informaram — num feriado, 1º de janeiro de 1916, dia de Ano Bom.

Voltou posteriormente ao seu cargo efetivo na Secretaria da Fazenda, do qual fora demitido sem motivos. Viveu calmamente os restos dos dias que Deus lhe concedera e faleceu em 27 de julho de 1927, abrindo, com a sua morte, vácuo imenso na política estadual.

Poderia ter sido deputado ou senador federal, mas preferiu não deixar sua terra natal, aqui vivendo e aqui morrendo, cercado de amigos e de inimigos, uns e outros respeitando-o, fazendo a justiça de considerá-lo um homem, no sentido exato da palavra.

Casado com a irmã do consagrado pintor Rosalvo Ribeiro, deixou dois filhos maiores. Seu enterro foi dos mais concorridos de Maceió, verdadeira consagração. Compareceram amigos e inimigos, além de grande massa popular.

Uma das mais simpáticas vítimas da soberania popular de sua época foi Bráulio Guatimosim Cavalcanti, assassinado estupidamente na praça dos Martírios, num “meeting” às 5 horas da tarde de 10 de março de 1912, quando fazia propaganda das candidaturas Clodoaldo da Fonseca e Fernandes Lima aos cargos de governador e vice-governador. Exatamente no dia seguinte, 11 de março, completaria um ano que Bráulio concluíra o curso superior e se bacharelara na Faculdade de Direito do Recife.

O Centro Cívico Glorificador da memória de Bráulio Cavalcanti, com dinheiro obtido em subscrição popular, mandou erigir uma estátua ao seu patrono, a qual foi colocada na praça do Montepio, depois crismada com o nome do poeta nascido em Pão de Açúcar neste Estado, em 14 de março de 1887. Colocaram-na de braço estendido, dedo apontando teimosamente para a residência do coronel Paes Pinto.

Praça Montepio sem a Faculdade Direito que seria construída no início dos anos 30

A respeito desse monumento escreveu o professor Moreno Brandão: “… a estátua de Bráulio Cavalcanti, não obstante a expressão intelectual do poeta, teve apenas inspiração política no sentido mais desprezível do termo”.

Paes Pinto possuía uma égua preta, bonita, bem cuidada e após a campanha contra si promovida passou a chamá-la Juliana, transmitindo ao animal a alcunha com que fora brindado pelos inimigos políticos.

Eleito presidente dos Estados Unidos, Abraão Lincoln foi apelidado Old Abe, alcunha que transmitiu ao seu cavalo de estimação, no qual costumava diariamente percorrer os seis quilômetros que separava a Casa Branca do Asilo dos Inválidos da Pátria, onde estavam sua esposa e seu filho Robert.

Saberia disso o cel. Paes Pinto? Ou imitara, sem querer, o grande estadista americano?

1 Comentário on A chácara Angélica

  1. Claudio de Mendonça Ribeiro // 15 de agosto de 2023 em 06:08 //

    Muito grato, prezado Ticianeli.

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