Do bárbaro e grosseiro costume do entrudo e de suas fatais consequências em 1834
Do livro “Viagens e Observações de um brasileiro”, Tomo Primeiro, de Antônio Muniz de Souza. Tipografia Americana, Rio de Janeiro, 1834. O autor se definia como “um brasileiro, que desejando ser útil à sua pátria, se dedicou a estudar os usos e costumes dos seus patrícios e os três reinos da natureza em vários lugares e sertões do Brasil”.
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Outro igual prejuízo ingênito de Portugal sofre o Brasil, e é o seguinte. Nos três dias da Quaresma, domingo, segunda e terça-feira, (que são os tais dias chamados de Entrudo) os povos parecem ter perdido o sizo, pois à modo de louco se lançam uns aos outros só para o fim de se molharem e sujarem, com pós, tintas, barro etc. etc. sem o que não se satisfazem; ainda alguma pessoa mais delicada faz estas ações com substâncias não sórdidas, como polvilhos etc. porém os estúpidos grosseiros, molham e sujam com o que acham; esgrimem, lutam, brigam e fazem as maiores extravagâncias de todo o universo. Os doentes de dieta, os de resguardo e os que se acham dormindo, ninguém lhes escapa, em nada há reserva; nestes dias sobra a comida e as bebedeiras e ainda mais sobram as indigestões e rigorosas constipações; perdem-se e estragam-se muitos bons trastes. Ninguém pode sair à rua. Por isso que ninguém trabalha, só as pessoas sensatas e mais cordatas se acham trancadas para não serem vítimas de semelhante gente alucinada. E o mais digno de lamentar-se é ver nestes três dias correr o sangue humano e até cometerem-se mortes, em consequência de rixas suscitadas nestes dias de extravagâncias. Ainda está para ser a primeira vez que eu viaje em tais dias e não tinha sido testemunha de grandes desordens, pancadas e assassinos; isto vi acontecer mesmo na Corte aonde estive três anos e meio.
Só não observei esse procedimento no ano de 1826 porque o passeio do Salto Grande margens do Rio Gequitinhonha, entre os Botecudos. Quanto a mim acho que só assentava esta espécie de brincadeira em selvagens, pois me parece muito indecente, impróprio e indecoroso arriscarem-se tantas vidas para divertimento de alguns grosseiros e estúpidos. Ainda me lembro de ter ouvido a um homem sábio e prudente sobre esses assuntos, e por tal motivo dizer que entre as nações da Europa os povos de Portugal eram considerados como Gentios [incivilizados, selvagens] Europeus.
Se o Imperante quiser conhecer o grande prejuízo que sofrem as províncias do Brasil transite de modo que não seja conhecido a fim de lhe não tributarem o devido respeito, que se sobreviver aos três dias, estou certo que mandará extinguir semelhante brincadeira, a qual na verdade não é digna de Nações civilizadas, mas sim do Gentio da Europa. Não houve quem mais do que eu adotasse o Governo do Conde d’Arcos e suas opiniões, porém o senti desmerecer quando quis introduzir na Bahia no ano de 1817 o bárbaro divertimento do Curro [tourada], sacrificando as vidas de uns para entretenimento de outros; quando a vida do homem só se deve arriscar por coisas que sejam próprias e conducentes à aventura do maior número dos mesmos homens.
Grato, prezado Ticianeli. Lamentável.