A ameaça comunista no carnaval pernambucano

Passista no Frevo em Recife antigo. Fotos Verger

Edberto Ticianeli

Quem estuda o carnaval alagoano sabe da forte influência exercida pelo frevo pernambucano na terra que já foi dos marechais. O que poucos conhecem é que, a partir de meados da década de 1930, isso ocorreu de forma deliberada, programada, cumprindo objetivos traçados por um grupo de empresários liderados por um norte-americano, que assumiu os destinos daquela festa em Pernambuco.

E, por mais incrível que pareça, esse grupo perseguia também objetivos políticos no carnaval, principalmente o de neutralizar a ameaça comunista, que poderia ganhar adeptos entre os foliões.

A expansão do frevo, como produto cultural pernambucano, era buscada como forma de dinamizar o turismo em Recife. Esses consumidores, que estariam “nas cidades do interior e estados vizinhos (Alagoas, por exemplo)”, seriam capturados pela propaganda, que utilizaria comissões divulgadoras, o rádio e a “cinematografia”.

O responsável por essas constatações é o jornalista e historiador pernambucano Leonardo Dantas Filho, que foi redator do Jornal do Commercio (Recife) e do Diário de Pernambuco, além de Pesquisador do Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Portugal) e diversos arquivos da Europa.

Dirigiu o Departamento de Cultura da Secretaria de Educação e Cultura do Estado de Pernambuco, no período compreendido entre 1975 e 1979, além de ter sido o primeiro diretor-presidente da Fundação de Cultura Cidade do Recife entre 1979 e 1983. Também ocupou a Diretoria de Assuntos Culturais da Fundarpe, entre 1983 e 1987, e foi Diretor Geral da Editora Massangana da Fundação Joaquim Nabuco, entre 1987 e 2003.

Feita a apresentação, vamos deixar o historiador expor suas constatações, que têm valor histórico ao revelar a origem de um projeto cultural. São informações importantes para os que, em Alagoas, tentam encontrar caminhos para a valorização da cultura do Estado.

Passistas no carnaval de Recife em 1947, Foto de Pierre Verger para a revista O Cruzeiro

A Federação Carnavalesca

Leonardo Dantas Filho

Histórias do Carnaval do Recife – Capítulo 30. Publicado no Diário de Pernambuco de 13 de fevereiro de 1966, pág. B-3.

Os carnavais de sangue apesar, da repressão da polícia, continuaram presentes nas ruas e no noticiário policial da imprensa. Nos anos 30, os conflitos entre clubes carnavalescos tornaram se uma preocupação não só das autoridades governamentais, como de grupos da sociedade. A insegurança era tanta que havia agremiações que, para sair às ruas, solicitavam a presença de uma escolta da cavalaria.

Em 1932, carnavalescos preocupados com a situação da violência entre os clubes resolveram fundar a Liga Carnavalesca do Recife. Em reunião realizada no Clube das Pás, na Rua Velha, nº 245. Dois anos mais tarde, precisamente em 26 de dezembro de 1934, um grupo de executivos alheios ao Carnaval de rua do Recife, atendendo sugestão do jornalista Mário Mello, iniciaram os contatos para a fundação de uma sociedade civil que viesse aglutinar todas as agremiações carnavalescas. No escritório do engenheiro J. Pinheiro, da Pernambuco Tramways, empresa concessionária de distribuição de energia elétrica e do sistema de bondes do Recife, estiveram reunidos o diretor dessa companhia, J. P. Fish, o superintendente da The Great Western of Brazil Railway, Arlindo Luz, além do senhor Camucé Granja e, como não poderia deixar de ser, do jornalista Mário Mello, com o objetivo de traçar as bases de fundação do que veio a ser a Federação Carnavalesca Pernambucana.

Carta circular foi enviada a todas as agremiações carnavalescas, marcando “uma reunião inaugural” para quinta-feira, 3 de janeiro, às 20 horas, “na sede da Federação Pernambucana de Desportos, na Rua da Aurora, nº 237”. Assim, naquela noite, veio a ser criada a Federação Carnavalesca Pernambucana tendo, na ocasião, o jornalista Mário Mello apresentado um esboço de estatutos da nova entidade, que deveria pugnar pelos seguintes fins: “I – Procurar a harmonia entre os clubes filiados; 2 – Distribuir auxílio equitativo, cada ano, aos clubes que tomarem parte no carnaval; 3 – Dar prêmios aos clubes carnavalescos que de modo mais condigno se apresentarem; 4 – Desenvolver o turismo; 5Moldar o carnaval no sentido do tradicionalismo histórico e educacional, fazendo reviver costumes nossos, tipos de nossa história, fatos que nos educam; 6Colaborar com os poderes públicos para a regulamentação e boa distribuição do tráfego, a fim de que não haja prejuízo do frevo que merece apoio, para a sua conservação típica; 7 – Organizar comissões para a propaganda do carnaval de Pernambuco nas cidades do interior e estados vizinhos, bem como por intermédio do rádio da cinematografia”.

Em memorial enviado à Assembleia Legislativa, assinado pelo presidente J. P. Fish, com data de 26 de agosto de 1936, a Federação Carnavalesca Pernambucana informa dispor de 165 agremiações filiadas e reivindica o seu reconhecimento como de utilidade pública e a concessão de uma subvenção anual para a realização do carnaval. O documento enviado, depois de descrever as origens históricas do Carnaval do Recife, enfatiza: “…esses agrupamentos carnavalescos viviam em ambiente de rivalidade tal, hostilizavam se de tal maneira que havia receio de ir às ruas as pessoas pacatas, porque o encontro de dois clubes carnavalescos era sinal de derramamento de sangue. Vitorioso era o clube que deixava nas ruas maior número de feridos e até de mortos. Os compositores faziam músicas especiais para o momento do encontro, conhecidas como abafadoras, não só para superar a orquestra do clube adversário, como para excitar à luta os próprios partidários. Esse tipo de composição, também denominado de frevo coqueiro, é formada por uma linha melódica maleável, leve em notas mais ou menos longas a exigir mais apuro por parte dos trombones e trompetes, de modo a tornar ao inaudível a orquestra do adversário.

Passistas no carnaval de Recife em 1947, Foto de Pierre Verger para a revista O Cruzeiro

Mas nem só o carnaval era a preocupação dos criadores da Federação Carnavalesca Pernambucana. Do memorial de J. P. Fish e da exposição de motivos do deputado Arthur Moura, a quem coube relatar o projeto nº 70/1936, que veio dar origem à Lei Estadual nº 212, sancionada pelo governador Carlos de Lima Cavalcanti, em 3 de dezembro de 1936, se depreende uma preocupação bastante acentuada quanto às ideologias em voga, muito especialmente com o comunismo, que poderiam vir a atingir os quadros sociais dos clubes carnavalescos. A nova instituição funcionava como órgão de tutela, exercendo por vezes a censura oficializada, atividade vista com simpatia naqueles tempos de Getúlio Vargas: “… A Federação realiza um largo programa. Transforma cada associação carnavalesca em núcleo educativo. Proibe qualquer preocupação político-partidária; guerreia as ideias subversivas da ordem constitucional vigente do país. Defende o respeito à lei e a autoridade pública encarregada de aplicá-la, transforma os fúteis motivos carnavalescos em oportunos pretextos para fortalecimento do nativismo sadio e construtor.

Como se vê, a Federação Carnavalesca Pernambucana foi criada por um grupo de elementos estranhos ao Carnaval do Recife, sob a inspiração do jornalista Mário Mello, tendo como primeiro presidente um norte-americano, J. P. Fish, conhecido popularmente como Mister Ficher. Com esse apelido, ele vem a ser o personagem do frevo de Wilson Wanderley e Clídio Nigro, Banho de Conde, composto para o Carnaval de Olinda: “… Vem, vem padroeiro Ficher. / Vem, vem acender o painé! / Não mergulhei, mas molhei / Banho de maré tomei”. Pela documentação da época se depreende que a preocupação daquele grupo de executivos de companhias estrangeira era não somente com o chamado “carnaval de sangue”, que reinava nas ruas do Recife quando dos conflitos entre clubes pedestres rivais, mas, e de sobremaneira, com a ebulição de doutrinas em particular do comunismo, que ameaçavam recrutar adeptos entre as camadas populares naqueles dias que antecederam a Intentona Comunista de 24 de novembro de 1935.

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