Silvio Bulhões, o filho de Corisco e Dadá
Silvio Bulhões, reconhecido por ser filho de Corisco e Dadá e por ter liderado a campanha para que as cabeças dos cangaceiros fossem enterradas, é pouco lembrado como o respeitado professor de matemática e estatística de várias gerações em Santana do Ipanema, Alagoas.
Também economista, não esconde suas origens. Concedeu várias entrevistas e depoimentos sobre seus pais e chegou mesmo a escrever um livro contando a sua caminhada. “Memórias de um filho de cangaceiros – Corisco e Dadá” foi muito bem recebido pela crítica e é citado sempre pelos que realizam pesquisas sobre o cangaço.
Sua convivência com a história dos pais famosos começou cedo, aos três anos de idade. Silvio recorda que não gostava quando se referiam a ele como Filho de Corisco: “A minha resposta era tudo de baixo calão, que é até de se admirar, como uma criança com aquela idade, sabia tantas palavras feias, para externar seu ódio, por chamá-lo filho de Corisco”, verdade que somente descobriria anos depois.
Em depoimento para o documentário O mar de Corisco, de Pedro da Rocha, Silvio narrou que certa manhã de 1944, quando tinha nove anos de idade, adormeceu lendo gibi e sonhou ouvindo estampidos e depois viu um homem ensanguentado correndo em sua direção e gritando “meu filho, me socorra”. Acordou e relatou ao Padre Bulhões esse sonho.
Meses depois, dando vazão à curiosidade, decidiu que descobriria o que guardava um velho baú encostado num canto da casa. Imaginava que poderia ter preciosidades, como nas histórias de pirata que tanto ouvia. Resolveu desvendar o mistério quebrando a fechadura com martelo e talhadeira. Ficou decepcionado ao perceber que lá somente existia papéis e revistas.
Uma dessas revistas era A Noite Ilustrada, nº 476, de 9 de agosto de 1938. Ao folheá-la tomou um grande susto: em uma das páginas estava o retrato do homem que vira ensanguentado pedindo socorro a ele no sonho. Correu a avisar ao padre de sua descoberta. O pároco chorou e contou a ele que o homem da foto era o seu pai verdadeiro, mas não disse que fora um temido cangaceiro.
Dias depois, estava na sala brincando com o padre quando este recebeu os participantes de uma caravana que ia para a cachoeira de Paulo Afonso. Um deles perguntou: “Padre, esse é o filho de Corisco que o senhor cria? O padre negou e explicou que era filho de sua irmã Angélica “Liquinha” Bulhões.
Em seguida, ordenou a Silvio que fosse brincar fora casa. Como o padre nunca agia assim, o menino ficou curioso e saiu pela frente, mas voltou pela janela de um dos quartos. Abriu uma fresta na porta e flagrou o padre dizendo:
— Esse menino foi o maior presente que Deus me deu, o filho que Corisco me mandou pra criar.
Não havia mais dúvidas: ele era o filho de Corisco e Dadá. Havia nascido em 29 de agosto de 1935, na Serra da Beleza, município de Pão de Açúcar, Alagoas.
Foi já sabendo de toda a história que passou a estudar em Maceió como interno do Colégio Guido de Fontgalland, período em prestou o serviço militar na Marinha de Guerra do Brasil.
Em 1954, aos 19 anos de idade, aproveitou as férias de julho e, acompanhado pelo Padre Bulhões, foi conhecer pessoalmente sua mãe, em Salvador. Ao ver o filho, Dadá o abraçou, puxou sua cabeça até colocá-la sobre a coxa da única perna e passou a acariciá-lo enquanto cantava música de ninar.
Após colocarem a conversa em dia, Silvio quis saber da mãe o destino dado aos restos mortais do pai e perguntou se a cabeça estava exposta no Museu Nina Rodrigues. A mãe negou, escondendo a verdade.
Meses depois, já em Maceió, estava no Cine Plaza, no bairro do Poço, vendo o noticiário que antecedia os filmes, quando, em uma reportagem sobre as cabeças dos cangaceiros, surgiu a de seu pai.
Foi um choque para o jovem Silvio Bulhões. Saiu do cinema e perambulou pela cidade até atingir uma de suas praias. Lá permaneceu até o amanhecer, quando decidiu que não mediria esforços para tirar a cabeça do pai daquele museu.
Sua reivindicação, e de outros familiares de cangaceiros, encontrou eco na Câmara dos Deputados, em junho de 1965, quando o deputado federal pela Guanabara, Áureo Mello (PTB), apresentou o Projeto de Lei nº 2.867. Mandava sepultar as cabeças expostas no Instituto Nina Rodrigues. O projeto não prosperou e foi arquivado.
Em Salvador, sua mãe, Sérgia Ribeiro da Silva, a Dadá, também liderava o movimento pelo sepultamento das cabeças como forma de cumprimento da lei que exige respeito aos mortos.
Em sua peregrinação, Silvio foi personagem de reportagem publicada na revista O Cruzeiro de 9 de setembro de 1967. Na época, com 34 anos de idade, era funcionário do Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER) e professor do ginásio de Santana do Ipanema.
Na reportagem de Paulo Dantas sabe-se que, pouco tempo antes dessa publicação, Silvio tinha participado em São Paulo da III Convenção das Câmaras Júnior do país e lá contou sua história e o drama vivido com os restos mortais do pai. Consegui que a convenção inteira aprovasse, de pé, moção especial para que fosse “realizada uma campanha de âmbito nacional, visando ao sepultamento das cabeças de Lampião e dos seus companheiros cangaceiros”.
Ao ser entrevistado, exibiu o livro do professor Nina Rodrigues com a foto de Corisco: “É a isso que a sociedade reduziu meu pai. Que filho gosta de ver uma coisa dessas, por pior que tenha sido seu pai? Outro dia, minha filha de oito anos, em lágrimas, me indagou por que ainda não se enterrou a cabeça do seu avô”.
Em fevereiro de 1969, nova reportagem de O Cruzeiro reproduzia o clamor de Silvio Bulhões: “Sepultem a cabeça do meu pai”. A matéria foi produzida pelo jornalista alagoano Tobias Granja.
O pedido somente foi atendido em 6 de fevereiro de 1969. Por determinação do governador Luís Viana Filho, em cumprimento ao Código Penal brasileiro, que exige o devido respeito aos mortos, foram sepultadas as cabeças de Lampião e Maria Bonita no cemitério da Quinta dos Lázaros, em Salvador.
Dias depois, em 13 de fevereiro, foi autorizado o sepultamento da cabeça e do braço de Corisco, e das cabeças de Canjica, Zabelê, Azulão e Marinheiro.
Silvio foi a Salvador para acompanhar essas ações e lá viu que as cabeças estavam enterradas em gavetas de um “Carneiro”, com as devidas identificações. Avaliou que, de certa forma, a exposição continuava.
Como o corpo de Corisco estava no cemitério da cidade Miguel Calmon, na Bahia, Dadá requereu a exumação e levou os ossos para casa. Lá, em conversa com o escritor Jorge Amado, recebeu a sugestão que retirasse também a cabeça da gaveta na da Quinta dos Lázaros e juntasse tudo em um outro cemitério. Assim foi feito.
Após a morte de Dadá, em fevereiro de 1994, Silvio Bulhões, temendo que a cabeça embalsamada permanecesse intacta por gerações e que um dos seus descendentes ou de suas irmãs resolvesse devolvê-la a um museu, tomou a decisão de cremá-la.
Em 26 de maio de 2013 as cinzas de Corisco foram jogadas ao mar.
Quinto filho do casal de cangaceiros — dos sete, apenas três sobreviveram —, Silvio Hermano de Bulhões casou-se com Maria de Lurdes e tiveram vários filhos.
***
Republicamos a seguir a reportagem de Luciano Carneiro para a revista O Cruzeiro de 10 de outubro de 1953.
O filho de Corisco
Tenho uma história para contar ao Ministro Nero Moura — a história de um rapaz de 18 anos, chamado Silvio, a quem encontrei recentemente num ginásio de Maceió.
Depois de abordar com ele o assunto que me levara a conhecê-lo, indaguei que profissão estava disposto a seguir. Silvio disse numa voz de desalento:
— Medicina, já que não me é possível seguir a minha vocação.
— Qual é a sua vocação?
— Entrar para o Corpo de Cadetes-do-Ar. Pertencer à Força Aérea Brasileira.
— E por que não fazê-lo?
— A Aeronáutica não me aceitaria, quando soubesse que eu sou filho do cangaceiro “Corisco“.
E contou que alimentava desde criança o sonho de se tornar um aviador militar. Mas só há pouco, orientando-se sobre as condições de acesso à Escola Preparatória de Cadetes-do-Ar, soubera que um dos atestados exigidos aos candidatos forçá-lo-ia a desvendar a sua origem.
Não, não negaria jamais a sua paternidade. A ele não importava que “Corisco” tivesse feito os crimes horríveis de que é acusado. Só lhe Importava que “Corisco” era seu pai. E que lhe devia o fato de ter sido educado por uma família honrada e ter vindo a ser, ele próprio, um homem de bem. Não negaria, pois, que era filho de um cangaceiro, ainda que tal atitude lhe cortasse a carreira que desejava abraçar.
Dois dias antes, em Santana do Ipanema, eu apurara que Silvio colecionava recortes de jornais que falavam de seu pai — uma maneira sua de reverenciar-lhe a memória. Não me surpreendeu que em Maceió ele se dissesse grato ao pai.
…
Em princípios de setembro de 1935, o vaqueiro Pedro Ricardo estava num curral, ordenhando vacas, quando se viu cercado, de súbito, por um grupo de cangaceiros. Sua mulher, que o ajudava na extração do leite, deu um grito e agarrou-se a ele.
Era “Corisco“, o diabo-louro, lugar-tenente de “Lampião“. Adiantando-se, disse-lhes que não se assustassem. Não vinha fazer mal. Queria apenas um favor: que o vaqueiro fosse de cavalo a Santana do Ipanema entregar “um brinde” e uma carta ao vigário de lá.
Pedro Ricardo só tinha um caminho a seguir, aceitar a incumbência. Disse que ia, pediu a encomenda, escancarou os olhos ao descobrir que o tal brinde era um menino com poucos dias de nascido. “Corisco” deu-lhe também uma bolsa contendo o enxoval que fora feito em plena caatinga, talvez nos intervalos das lutas, por sua companheira Dadá, a mãe do garoto. O enxoval constava de nove camisinhas, duas toucas, alguns cueiros, sapatos de lã — tudo de cor berrante e moldes matutos, mas costurado com um desvelo fácil de descobrir.
Pedro Ricardo chegou à casa de Padre José Bulhões e não o encontrou. Tinha ido à Igreja. Ricardo deixou o bebê junto à porta da residência do vigário e saiu para o localizar.
— Trouxe um brinde para o senhor, reverendo. Está à porta da sua casa. Aqui tenho só esta carta.
Assim, o Padre Bulhões leu a carta antes de pôr os olhos no brinde. Estava pitoresca, na sua grafia matuta. Não respeito aqui a sua forma, porque ela não figura no arquivo da família Bulhões. Foi-me ditada de memória, por Maria Angélica Bulhões, irmã do Padre Bulhões.
Dizia assim: “Exmo. e Revmo. Snr. Vigário da Freguesia de Santana do Ipanema. Desejo que esta o vá encontrar gozando perfeita saúde e paz de espírito. Senhor Bulhões, segue em companhia desta carta este menino para o senhor criar como seu filho e educar da forma que puder. O pai do menino sou eu, Cristino Gomes da Silva Cleto, vulgo “Corisco“, e a mãe é Sérgia Maria da Conceição, conhecida por Dadá. O padrinho é o senhor mesmo, e a madrinha é Nossa Senhora. Peço ao bom vigário que crie este menino da melhor forma que puder. Olhe! Cuidado com o meu filho! Eu sou “Corisco“, chefe de grupo dos grandes cangaceiros“.
Padre Bulhões correu para casa, tomou o bebê nos braços e anunciou a suas irmãs:
— Neste momento a nossa família fica aumentada.
Releu a carta em voz alta, para todos ouvirem, deu entonação forte aquela frase preciosa: “O padrinho é o senhor mesmo e a madrinha é Nossa Senhora“.
Foi a vez de o vaqueiro Ricardo adiantar que o garoto nascera numa noite de tempestade, a 29 de agosto de 1935, na Serra da Beleza, município de Pão de Açúcar, Alagoas. Consultou-se a folhinha: estava então com oito dias de nascido. Foi batizado com o nome de Silvio e registrado com o nome da família: Silvio Hermano de Bulhões.
Corisco e Dadá fizeram questão de casar-se, depois que Padre Bulhões adotou Silvio. Mandaram buscar o vigário de Porto da Folha, Padre Bruno, e intimaram-no a casá-los imediatamente. O que foi feito. Não viram mais o filho, porém obtinham constantes notícias dele. Para os viajantes tornou-se até uma espécie de couraça saber novas sobre o filho de “Corisco“. Toda a pessoa que tinha de andar pelos vários territórios do cangaço, passava pela casa de Padre Bulhões antes de deixar Santana do Ipanema. E se no melo do caminho surgia algum assalto, era salvo-conduto infalível dizer que se levava notícias de Silvio para dar a “Corisco“.
A ideia inicial consistia em que Silvio não soubesse de quem era filho. Tanto assim que foi registrado como filho de Sebastião Bulhões, irmão do pároco. Não era decente que o próprio padre figurasse como pai: podia originar confusões no futuro.
Maria Angélica, irmã do Padre, caiu de amores pelo guri e se encarregou do papel de mãe. E Silvio cresceu chamando-lhe mamãe, chamando a Sebastião papai e ao Padre Bulhões padrinho.
No começo a coisa funcionou bem. Mas um belo dia a criança fez cara de gente grande e perguntou a Maria Angélica:
— O que é que a senhora me é?
— Tua mãezinha.
Virou-se para Sebastião Bulhões e perguntou:
— E o senhor?
— Teu pai.
Silvio botou as mãos à cabeça e quis saber:
— Como é que os senhores, sendo irmãos, podem ser meus pais? Só se….
Antes que ele aventasse uma explicação decerto incômoda, os Bulhões saltaram de medo, e chamaram Silvio para contar-lhe a verdade.
Nesse dia Sílvio começou a respeitar “Corisco“.
Os Bulhões, naturalmente, passaram a acompanhar a vida de “Corisco” e Dadá. Queriam saber tudo que lhes dissesse respeito. No fundo o vigário esperava que os pais de Silvio se regenerassem.
Entretanto, a penúltima notícia que deles tiveram trouxe apenas mágoa. “Corisco” vingara-se da morte de “Lampião“, mandando degolar o velho fazendeiro Domingos Ventura, sua mulher e quatro filhos maiores. Tinha atacado a Fazenda Patos, município de Piranhas, por saber que os Ventura eram parentes de Pedro Cândido. Cândido era o “coiteiro” que traíra “Lampião“, indo levar a volante policial até ao esconderijo do rei do cangaço, na Fazenda Angico. Em seguida mandara as cabeças de presente as autoridades, em represália contra a decapitação de “Lampião” e seu estado-maior.
Padre Bulhões baixou a cabeça.
A última notícia dizia no final: “Corisco” fora baleado num combate. Preso, gravemente ferido, morrera alguns dias depois. Tivera um fim parecido com o das suas vítimas na Fazenda Patos: decapitaram-no. A diferença entre o seu destino e o dos Ventura: as setes cabeças das suas vítimas foram logo enterradas; a cabeça de “Corisco” jaz insepulta na Bahia, como peça de museu.
E Dadá? Não morreu.
Ferida numa perna, teve de amputá-la. Mais tarde retirou-se para o interior da Bahia, casou de novo e parece que vive bem.
De 1945 em diante manteve correspondência com Padre Bulhões, só interrompida com a morte do reverendo em princípios deste ano. Escreve constantemente para Silvio, assim como escreve para outro rebento da sua união com “Corisco“: a filha Maria Celeste, que mora em Sergipe. Dadá, Silvio e Maria Celeste trocam cartas entre si mas nunca se viram.
Silvio mostrou-me a carta que a mãe lhe dirigira por ocasião da morte de Padre Bulhões. Era tão bem escrita, num português tão correto, que perguntei se a caligrafia das cartas anteriores era a mesma. Ele disse que sim.
Alguns trechos:
“Meu filho querido, perdeste o teu pai de criação, sofrendo assim um grande golpe: porém, esse homem que foi um santo, deixou para te guiar na vida os mais sábios e prudentes conselhos… conforme se vê na carta do mesmo, da qual tirei cópia. Segue os ensinamentos que te foram dados e serás feliz, pois somente no futuro é que poderás aquilatar o tesouro inestimável representado nas linhas dedicadas por ele a ti…”
“Meu filho, faz o possível para compensar aquele que se dedicou à tua existência. Faz o possível para honrar o nome dele, bem como o de teu pai.
…
Silvio Hermano apanhou a carta que lhe devolvi e colocou-a cuidadosamente no envelope. Quando eu lhe disse que iria ao gabinete do Ministro da Aeronáutica saber se um moço tinha culpa por haver sido gerado no ventre do cangaço, filho da caatinga, e se por isso era menos brasileiro que Getúlio ou Ademir, Silvio ficou fascinado com a ideia de que talvez pudesse tentar a concretização do seu sonho!
Soube dizer apenas isto:
— Estou estudando muito, muito. Não sou brilhante, mas vou indo. Quero fazer tudo para dar gosto à minha gente de Santana do Ipanema. Dar gosto a minha mãe, honrar o nome do pai.
***
Sílvio Bulhões faleceu em Maceió no dia 18 de março de 2024.
linda história do nosso povo. Um tesouro de imenso valor!
Caro Ticianeli, grato por publicar esta reportagem.
Para mim, bastante triste.
História triste e de muita sabedoria e amor.
Origem de um povo forte e honrado , viva o povo Nordestino, com suas falhas e seus acertos.
Isto é ser humano
Obrigado Ticianeli
Léo Oliveira.
Amo a história do cangaço e não conhecia essa, li até o final e fiquei fascinado com tantos detalhes, inclusive, ao mesmo tempo, estava assistindo uma entrevista com ele feita por uma professora aqui em Maceió! 👏👏👏Sim, sou de Maceió!
Que história incrível!
História incrível de um povo exuberante