Presente do Natal
Félix Lima Júnior
Publicado no Diário de Pernambuco de 27 de dezembro de 1952.
MACEIÓ – O século XX era ainda rosso garoto, envolvido em finíssima camisa de linho bem bordada. Acariciado por todos, querido mimado tratado à vela de libra, como um filho único, de família rica; era criança, cheia de luxos… Vira apenas 5 ou 6 risonhas primaveras…
Maceió, nessa época longínqua, era a grande aldeia que sabemos, que podemos imaginar, com as gameleiras ensombrando o aterro de Jaraguá, o jardim fechado da praça Pedro 2º. Os bondes da Catu puxados a burro, as festas dos Martírios. Cocos cantados nos bondes e nos trens pelo Natal, prolongando-se em algumas casas a noite inteira, procissões concorridas, carnaval animado com muitos clubes de ponta de rua, o Cara Dura à frente.
No fim de ano, pelo Natal, quase todas as famílias recebiam festas. A Feira Franca, que ocupava o mesmo prédio onde ainda {1952] está? Pertencia ao senhor Jacintho Vieira da Costa e distribuía caixinhas de passas com gravuras enfeitadas com papel rendado, vindas diretamente de Málaga; a mercearia Boa Vista, de Serafim Costa & Cia., presenteava os fregueses com vinho do Porto, Xavier Leitão, legítimo, vindo da santa terrinha; Silvino Oticica Ferreira, estabelecido na rua do Comércio. 46, distribuía belíssimos cromos, importados. especialmente de Paris, com gravuras europeias — os prados verdes da Normandia, castelos alemães das margens do Reno, a praia do Estoril, Trafalgar Square, a catedral de Santo Estevão em Budapeste, camponeses gregos dançando com suas roupas exóticas, a Porta do Sol em Madrid, o Lago Leman, os fjords noruegueses; o Bazar de Novidades de Boaventura do Amorim & Cia. oferecia pequenos canivetes de aço finíssimo, made in Germany; Duque de Amorim & Cia. se faziam lembrados com cestinhas de figos vindas de Atenas; A mercearia do sr. Américo Passos Guimarães encantava a gurizada com folhetos coloridos de propaganda da farinha láctea Nestlé; as farmácias Fidelidade e Braga, ambas na rua do Comércio, distribuíam almanaques de Baier e de Bristol.
Surgiam os inevitáveis pedidos do carteiro, do distribuidor de jornais, dos estafetas, do Telégrafo, do lixeiro, geralmente em versos de pé quadrado:
Felicidade no Natal
Eu vos desejo, leitor,
Um puro amor fraternal
Na paz de Nosso Senhor.
Muito feliz é aquele
Que a alguém dá bocado
Ajudai ao que trabalha
Terei, de certo, bom fado!
A cidade, porém, sem o solicitar, recebia anualmente enquanto se preparava com roupas novas feitas n’A Popular, da Rua Boa Vista, 34, pertencente ao Paulo Neves, ou no Comércio, 170, pelo saudoso mestre Ernesto Valentim, para quebrar a tigela nas magníficas festas de Bebedouro, do inesquecível major Bonifácio Silveira, presidente perpétuo da República da Alegria — recebia magnífico presente do Natal, que ele era entregue por Papai Noel em pessoa — as emboladas do Chico Barbeiro.
Francisco da Cunha Lima, o Chico Barbeiro, figura popularíssima, geralmente estimada, falecido há uns seis anos, no Recife, para onde se mudara, tinha o apelido pitoresco de Sururu de Botinas, pois não usava outra espécie de calçado, nem à mão de Deus Padre… Mais baixo do que alto, forte, gordo, muito alegre e brincalhão, andava gingando, sendo amigo de todo mundo. Jamais teve qualquer aborrecimento com as pessoas que focalizava em suas apreciadas emboladas, pois, pilheriando com as principais figuras políticas e sociais da capital alagoana, jamais ofendeu a quem quer que fosse. E mais outra coisa: o que escrevia podia ser lido por qualquer menina no colégio do Sagrado Coração de Jesus, de d. Ana Prado, pois fazia graça sem pornografia, sem palavras de duplo sentido, sem inconveniências.
Dessas emboladas, ao que me consta, só uma pessoa possui colecção completa: o escritor dr. Manuel Diegues Júnior, que a recebeu de seu saudoso pai, cujo centenário de nascimento acabamos de comemorar.
Não conseguiu os folhetos dessas emboladas. Mas amigos daqueles bons e saudosos tempos têm me fornecido cópias das que conservaram de memória. Deve haver erros e imperfeições, mas vou registrá-la assim mesmo.
Eita ferrugem cheguei todo arrepiado,
Cabra aqui come safado nas unhas do Capitão.
Fui falar ontem com seu major Acioli.
Ele me chamou de mole mas não sabe nada, não!
Sou cabra duro arrancado das caatingas
Se eu tomar fogo no binga dou aqui muita lição.
Meu colete é cascavel à tiradura (?)
Não há outra criatura tão ruim pra mal de monte.
Eu não me importo, bebo casca, de gitó,
Umburana e jericó, subo e desço toda ponte!
O Capitão era José Pinheiro da Silva, da Polícia do Estado, que está reformado, desde 1912, residindo nesta capital, à rua Libertadora Alagoana. Homem de idade muito avançada, é figura estimada e popular, não saindo à rua sem uma flor à lapela. O Major Acioli, também citado, era o senhor José Pereira Acioli, subcomandante daquela milícia e que faleceu, nesta capital, há cerca de 20 anos. Era avô do comerciante Ciro Paturi Acioli. Mal de monte era erisipela.
Francisco Venâncio Barbosa, o Chico Zú da Ponta Verde, com seus currais para pescaria, seus coqueiros, no meio deles o falado Gogó da Ema, sua capelinha, seu sobrado mal-assombrado, que lá está ainda de pé, foi Conselheiro Municipal e deputado estadual, sendo figura de destaque ainda hoje lembrada:
O Chico Zú que mora lá na Ponta Verde
Esse ninguém afronta, todos lhe tiram o chapéu.
Mas é homem que zangado muito pode
Quando querem a cavala pelo preço do xaréu.
José Bezerra Montenegro, conhecido como Zumba do Bolão, depois de negociar num povoado do município de União e ser banqueiro de bicho, veio explorar o mesmo ramo em Maceió. Certo indivíduo teve um sonho bom, descarregou todo o dinheiro que podia arranjar no jacaré, que foi o bicho do dia. Quebrou a banca, o que foi assunto para conversas mais de um mês:
O Seu Zumba vive agora muito alerta
Comeram ele na certa no dia do jacaré
Fizeram dele linguiça dentro de tacho
O matuto é cabra macho, não perdeu a boa fé…
O negociante Leobino Silva, falecido há cerca de um ano nesta cidade, explorava uma tabacaria na rua do Comércio. Resolveu mudar de ramo e montou um caldo de cana, onde vendia também caninha especial com cajus e tira-gosto:
Seu Leobino que montou sua engenhoca
De beiju, de tapioca, caldo de cana e caju
Tem certa droga que queima a boca da gente
Quem bebe de repente faz mais roda que peru!
A droga que queimava a boca era sorvete. Então, novidade na pacata terra do sururu.
As excursões à Cachoeira de Paulo Afonso estão na moda. Não somente em Alagoas, mas em todo o nordeste. Agora que vão adiantados os serviços da Companhia Hidroelétrica do São Francisco. Hoje tudo é fácil, há estradas, automóveis, aviões. Naquele tempo era viagem difícil, demorada, verdadeiro sacrifício. Resolveram fazê-la, apesar das dificuldades, diversas pessoas das melhores rodas de Maceió, destacando-se entre elas com sua alegria, seus modos educados de perfeito cavalheiro, o comerciante Antônio Brasileiro, sempre de branco, com chapéu Panamá, de abas descidas, como eu conheci ainda há poucos anos:
Seu Brasileiro de chapéu acabanado
Disse sou abalizado, ronco mais do que trovão.
Se duvidarem dou um pulo de tainha
Vou lá embaixo na grotinha, trago d’água cheia a mão!
O intendente municipal era o dr. Manuel Sampaio Marques, saudoso médico conterrâneo, falecido em 1951. Numa das emboladas, foi focalizado:
O Intendente, seu doutor Sampaio Marques.
Só dá vinho Labarraque pra tomar nas refeições.
Passa a receita, toma nota nos caderno
Cura todo mal interno sem fazê a operação.
Muito grato, prezado Ticianeli.