Vida sem jeito

Praça dos Martírios em 1945

Ledo Ivo

*Publicado na Revista Carioca de 9 de abril de 1936. Conto premiado no concurso permanente dessa revista. Título original: Viver sem geito.

Ledo Ivo na década de 1940. Acervo IMS

Sempre a mesma choradeira. Vida cara p’ra danar. Tudo pela hora da morte. Aluguel de casa, cheia de goteiras, caríssimo. E ainda por cima pagar ao colégio. Era luxo funcionário público mandar os filhos para um colégio particular, mas lá os frades apertavam e os filhos tinham que estudar. O judeu das prestações todo mês levava seu quinhão, a criada também. E como complemento pagar contas nas vendas e padarias, comprar um vestido para Maria, um par de sapatos para Joana, um terno para o Alberto, umas camisas para o Paulo e um par de meias para a mulher.

Armando ficava afobadíssimo. Isso era lá vida. E se lembrava do discurso que um orador fez na praça Deodoro:

— O Brasil inteiro reclama uma vida melhor. Precisa de tudo para a felicidade de seu povo…

Seria verdade aquilo? Mais vale um pássaro na mão do que dois voando. Ganhava quinhentos bagarotes na Prefeitura. E outros que ganhavam um nada? Lembrou-se do Simplício, ganhando menos do que ele e andando numa ginga de lascar, com mulher e sete filhos. Ele só tinha quatro e o dinheiro não dava. Na prefeitura, sentado na cadeira giratória, ouvindo abusos dos chefes:

— “Seu” Armando, avie-se. Quero essa petição em ordem.

— “Seu” Armando, quero este relatório pronto, hoje.

Era assim. Cada um que despejasse em cima dele um “quero” autoritário. Em casa a mulher com peditórios, os filhos perdendo aulas porque só tinham uma roupa. O vendeiro reclamando todo dia, o dono da padaria ameaçando cortar o fornecimento. Vida de pai de família funcionário da Prefeitura.

***

Armando deixou a repartição à tardinha, como sempre. Sentou-se num banco da praça do Martírios. Viu o movimento dos carros, embocando e desembocando no comércio. Os bondes preguiçosos da Nordeste imitavam as tartarugas. A praça cheia de meninos brincando, e as amas conversando com os soldados. O samango fazia viravoltas com o “casse-tête” na mão. De vez em quando apontava um conhecido:

— Botarde, “seu” Mando.

— Botarde, “seu” Aristeu.

E pronto, ficava olhando o movimento, abestalhado. Aquilo era vida de cristão, coisa nenhuma. Tirou um jornal do bolso. Começou a ler. Os alemães passando banha para Adolf Hitler; o duque de Windsor e a mulher dele, passeando; Mussolini fazendo discursos e o doutor Getúlio fazendo bonito, nomeando e mandando gente dar o fora. Aquilo sim, que era homem. Sete anos no governo e ainda não tinha pulado. E ele, armando Pereira de Andrade e Silva? Como sempre: funcionário da Prefeitura. E lembrou-se da mulher, pedindo meias, dos filhos sem roupas e com os sapatos furados, sem jeito de botar meia-sola. Colocou o jornal no bolso, levantou-se suspirando um “ói” compassado e rumou para a casa de porá e janela da Rua Augusta, onde morava. Entrou em casa. A Joana veio logo:

— Papai, o Alberto quebrou um copo.

— Mentira, papai. Foi ela, berrou Alberto dos fundos da casa.

Ilustração original de Euclides L. Santos

Armando deu um beijo bambo na mulher. Esta descarregou logo uma coisa p’ra dizer:

— Mandinho, “seu” Tonho não quer mais vender fiado, não.

— Está bem, vou falar com ele depois da ceia.

— Não vale a pena. O melhor é você arranjar dinheiro e pagar aquele filho de uma égua.

— Vou pedir dinheiro emprestado ao “seu” Carlindo, resolveu Armando.

A ceia estava ruim de verdade. O café, de segunda, estava mal coado, cheio de pó. Reclamou. A esposa desculpou-se. A culpa não era dela nem da criada. E para finalizar:

— O pano de coar está todo furado.

— Deixe estar que quando eu receber dinheiro eu compro um pano de coar — disse Armando.

Aquilo era praxe. Quando eu receber dinheiro. Para o padeiro, sapateiro, “seu” Jacó das prestações, Dr. Azevedo do aluguel da casa, a mesma mamãesada. Quando eu receber dinheiro.

O pão estava dormido, duro feito a peste. Não podia nem reclamar na padaria. Devia lá dois meses de fornecimento. Quando recebesse dinheiro, sim, que fazia as reclamações. Agora não, estava liso, sem nem um “x”. O dono da padaria não tinha consciência, nem reparava que ele era funcionário público. eram umas pestes, esses homens.

A Maria meteu-se:

— Papai, preciso de umas meias. As minhas estão podres de velhas.

— Quando eu receber dinheiro, compro.

— Ora, papai. Daqui p’ra o dia dois Deus tem muito que fazer. Compre fiado, ao “seu” Jacó.

— Sim, minha filha. Eu compro…

Praça dos Martírios, Maceió, em 1945

Aquele “seu” Jacó era um ladrão. Vendia tudo pela hora da morte. Judeu cachorro, filho dessa, filho daquela.

Depois da ceia, botou o chapéu encardido na cabeça, ajeitou a gravata e saiu. A mulher ainda gritou-lhe ao pé do ouvido:

— Não se esqueça de pedir emprestado p’ra pagar ao “seu” Tonho.

Bateu na casa de “seu” Carlindo. Fez uma choradeira da miséria. Queria cem mil réis até o fim do mês. O alto negociante de nossa praça, como diziam os jornais referindo-se ao “seu” Carlindo, buliu e rebuliu no cofre e entregou a nota a “seu” Armando. Este enfiou-a no bolso e balbuciou uns agradecimentos seguido do seu padre-nosso:

— Brigado, “seu” Carlindo. Quando eu receber dinheiro, eu pago…

Tomou o chapéu e saiu. Na rua, apertava a nota, com a mão trêmula dentro do bolso. “Seu” Tonho da venda não viria mais com desaforos. Era ali na batata. Comeria todos os dias dormido até que recebesse dinheiro. Depois, liquidaria as contas e lançaria nas ventas do dono da padaria umas verdades duras. Cachorros! Nem reconheciam que ele era funcionário público que só recebia dinheiro do dia dois em diante. Cachorros, filhos de uma porca, cretinos! Eram tudo. E ele tinha vontade, sim, muita vontade de gritar aos transeuntes:

— “Cidadões”…

Engraçado, ele não sabia se era “cidadões” ou “cidadãos”. Perguntaria a Maria, sua filha, que estava no segundo ano seriado do Santíssimo Sacramento. E gritaria:

— “Cidadões” ou cidadãos, eu não sou caloteiro. Sou um modesto funcionário público!

E apertava com força a nota de cem mil réis. Dinheiro sim, quem tinha dinheiro, tinha tudo. E repetia mentalmente, pensando no bilhete de “seu” Carlindo, no dia dois:

— Quando eu receber dinheiro, eu pago…

2 Comments on Vida sem jeito

  1. Amo ler História de Alagoas, do professor e historiador Edberto Ticianeli. Supimpa!

  2. Elzo JUVÊNCIO // 10 de janeiro de 2023 em 19:04 //

    Parabéns pelo texto retrata muito bem a realidade de muitas pessoas

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