A louvação do Bumba meu boi

Folia de Bumba meu boi no subúrbio do Recife. Carnaval de 1954. Foto de Marcel Gautherot. Acervo IMS

Manuel Diégues Júnior

*Publicado na Revista da Academia Alagoana de Letras, Ano V, nº 5, Maceió, dezembro de 1979.

De todos os folguedos populares no Brasil é, sem dúvida, o Bumba meu boi o mais caracteristicamente nacional; assim pode ser considerado não apenas pela extensão geográfica de sua presença, constituindo tema conhecido do norte ao sul. Nacional o é ainda pelos personagens que nele figuram, representativos dos diferentes grupos étnicos que constituíram os elementos fundamentais de nossa formação.

Geograficamente é talvez o único folguedo, cuja temática — a da presença do boi e sua glorificação — aparece em partes do Brasil, embora com nomes diversos. E, por exemplo, Boi Bumbá na Amazônia; é Boi Surubi, no Ceará; é Boi Kalema, no Rio Grande do Norte; é Boi-duro, Burrinha ou Mulinha de ouro, na Bahia; é Boi de mamão em Santa Catarina; é Bumba em várias partes do Brasil; como é simplesmente Boi, em outros lugares — expressão essa, aliás, que aparece também sinonimamente a outras, em vários pontos do país.

Sua origem é discutida. Para uns é a consagração do Boi, com uma tradição extra brasileira e até mesmo extra europeia, já vinda de fontes mais remotas, como seja a consagração do Boi Apis, no Egito. Para outros, é tradição trazida de Portugal, das Tourinhas, touradas praticadas no Minho, região de onde foi grande a emigração para o Brasil; isto que recorda Luís da Câmara Cascudo, mestre maior neste assunto do folclore, é o que nos parece mais acertado. Aqui tomou feição própria, impregnou-se de gênio local, recolheu elementos culturais do meio, integrou as figuras étnicas, e pôde então surgir como manifestação expressiva de nossa criatividade cultural.

O Bumba meu boi e seus agregados as baianas, a banda de pífano e seus brincantes em quadro a óleo do alagoano José Zumba

Ressalte-se, aliás, que o criatório aparece, em posição importante, em diferentes regiões do país. O boi aqui chegou com a ocupação humana e, do litoral, se foi espalhando por diversas outras regiões, marcando sua presença de diferentes maneiras. Daí a consagração popular que o exalta e o destaca no quadro cultural do país.

Sabe-se que, entre nós, as primeiras manifestações do Bumba se encontram recolhidas no Nordeste, em região açucareira, ou litorânea; daí se foi estendendo, adaptando-se a cada meio. Deveria ter sido de origem sertaneja, em zona pastoril, onde o boi imperou como motivo de atividade econômica. Entretanto, seus figurantes, algumas de suas cenas, evidenciam justamente sua origem extra pastoril, embora para aí tivesse sido levado posteriormente. É curioso observar, e isto mostra ainda mais seu surgimento em zona não de criatório, que o folguedo não é registrado no Rio Grande do Sul nem nas Minas Gerais – áreas importantes na criação de gado

De outra parte, pode também observar-se que, em seu processo de evolução, e nesta adaptação a cada meio e não raro a cada tempo, foi incorporando outros autos ou folguedos. O caso do Cavalo Marinho, por exemplo. Autos ou folguedos antes autônomos, foram absorvidos, embora em algumas partes continuem a viver independentemente.

Nacional o Bumba meu boi é também se considerarmos seus figurantes. Numerosas são as figuras em todos os bois; é o caso do Mateus, do Mestre, do negro Bastião, às vezes caboclos em outros bois, da crioula Catarina, do Arlequim, do Arrelequinho, o Cavalo Marinho, a Cabocolinha, que é a figura indígena, a Pastorinha, o Guriabá, o Jaraguá, o padre que não é constante em todos, os Bois, o Cirurgião ou Doutor. Em algumas áreas a figura central é o Cavalo Marinho, outras vezes chamado Capitão, acompanhado pelo Mateus, a Pastorinha, o Bastião, o Arlequim; em outras, o Mestre, logo seguido do Mateus.

Mateus, vaqueiro preto, e o Bastião se tornam, entretanto, figuras centrais entre os personagens do Boi, por isso que são os responsáveis por todo o desenrolar do folguedo, bailando e cantando, animando o Boi. Pode-se dizer que, de modo geral, cada Boi vai incorporando novas personagens, mantidas, porém, aquelas principais, através das quais o folguedo desenvolve sua estória. O Mateus e o Bastião são os animadores do folguedo, e por isto esta é uma das principais invocações da cantoria:

“Toca bem esta viola
No baiano gemedô,
que o Mateus e o Bastião
São dois cabras dançado.”

Branco, negro, índio, mulatos, mamelucos, mestiços em geral, estão presentes assim entre as personagens do folguedo. São figuras diversas que nele atuam, com uma presença tipicamente de crítica social, não raro de sátira. E é tão espontâneo que quase sempre é recriado através da colaboração popular que vai introduzindo no folguedo novas cenas ou novas expressões

O que é natural se considerarmos ser o folclore um fato dinâmico e não estático: é vivo e acompanha a sociedade em que está inserido; modifica-se pela influência dessa sociedade, graças às transformações que ela própria vai sofrendo em sua estrutura. O que sucede com os diferentes fatos folclóricos, acontece igualmente com o Bumba meu boi. Um octogenário de hoje estranharia um Bumba por não lhe parecer o mesmo que viu em sua meninice. Contudo, isto não tira ao Bumba sua característica marcante, o processo de sua presença, sua participação na vida regional, seja nas festas natalinas, em algumas áreas, seja nas festas juninas, em outras.

Bumba meu boi em 1947 no Amazonas

Talvez cause estranheza que um folguedo como o Bumba tenha surgido em área açucareira, quando se trata de tema ligado à área pastoril. Fácil é justificar o fato, entretanto. O boi foi elemento importante na ocupação do litoral, na atividade açucareira: primeiro, era a força que puxava os carros — os chamados “carros de boi”, em que senhores e senhoras viajavam, e que era igualmente o veículo que servia para conduzir os feixes de cana colhidos no canavial, levando-os à moenda, e, depois, fabricado o açúcar levando os sacos do produto para o comércio; depois, o boi se tornou fator de penetração, foi abridor de caminhos, e com o vaqueiro penetrou o interior fazendo o sertão. No Nordeste o vale do São Francisco foi o ponto de irradiação dessa expansão, saindo o povoamento para o sul, o centro oeste, o Piauí, o extremo norte. Sabe-se hoje, por documento do século XVIII, que foi um vaqueiro pernambucano, conduzindo sua boiada, que penetrou inicialmente em território hoje amazônico. De modo que o boi se tornou animal consagrado, no litoral e depois no interior, onde centralizou toda uma atividade econômica — a pastoril, com o criatório.

O Bumba meu boi consagrando o boi, integrando-o na paisagem regional, não faz mais do que traduzir o que poderíamos chamar uma manifestação do espírito popular, expressando a presença do animal na própria vida humana. Romances evocando narrativas de boi, sua vida, suas proezas, são vários, como o Boi Espácio ou o Boi Pintadinho; como ainda o Rabicho da Geralda, fonte possível do Boi Misterioso — clássico na literatura de cordel. Pois na literatura de cordel também vamos encontrar o Boi exaltado, glorificado, em diferentes folhetos, e não só no já referido Boi Misterioso, do grande Leandro Gomes de Barros; também no Boi Mandigueiro ou na “Vaca Misteriosa que falou profetizando”. O homem assim ressalta e exalta o seu amigo boi, talvez entre todos os animais o mais dedicadamente proclamado na poesia popular.

Não falta também ao boi sua presença na tradição cristã, ao lado do Jesus Menino, aquecendo a criança com seu corpo forte e seu bafo quente, na noite fria de Dezembro. Talvez por isso mesmo sua aliança maior com o homem, através do Menino Deus, colaborador dos que trabalham na lavoura, na pecuária, na ocupação da terra, na charrua, no movimento de moendas, de engenhocas, de meios ainda primitivos do trabalho, dando com o emprego de sua energia alívio ao esforço do homem.

E porque foi também elemento presente em várias outras penetrações do território, não seria difícil o boi tornar-se foco de interesse das populações, em diferentes áreas, centralizando um folguedo popular que, assim, se tornou nacional.

E o boi surge, com pequenas modificações ou adaptações, decorrentes do ambiente, ou em face de peculiaridades regionais, talvez mesmo relacionadas com o próprio criatório. Inclusive as modificações ou adaptações de nome. Que em nada alteram o espírito do folguedo, mesmo que a sua realização não seja, em toda parte, absolutamente igual.

Carro de Boi em Alagoas. Foto Stuckert

De modo geral, o enredo do folguedo decorre em torno da existência de um boi, animal de estimação do senhor, seu proprietário, dono da fazenda, da escravaria, de gado; o animal é morto por um vaqueiro, e o fato é por todos lamentado, mas depois pela intervenção do doutor ou, em outras versões, do cirurgião, o animal é ressuscitado através de uma “ajuda”, expressão que, na linguagem nordestina, quer dizer “clister”, tratamento antigo muito comum na região para qualquer moléstia, ou ameaça de doença.

Em algumas versões do Boi há uma parte final que é chamada Testamento do boi; nela são distribuídas aos presentes as diferentes partes do animal, como uma espécie de lembrança — a cabeça, os chifres, o coração, os rins, as pernas, o fígado; enfim, cada parte é reservada a um dos presentes ao brinquedo. Não raro o testamento do boi assume uma fisionomia de sátira maior, de pilhéria, ligando a parte doada a algo que se relacione com a pessoa a quem é distribuída. Hoje em dia quase não há mais o testamento. O folguedo se centraliza no bailado, que se desenrola com o enredo cantando, narrando e dançando pelos participantes, sobre a vida, a morte e a ressurreição do boi.

Desta síntese tão rapidamente feita, parte toda a elaboração do folguedo; o Boi dançando, fazendo a alegria de todos, dançando também os participantes do grupo, as crianças, ou jovens, que presenciam o folguedo, na expansão de seu entusiasmo; cantos e danças que, no festejar o Boi, recordam expressões do espírito brasileiro, pela temática da música, em seu ritmo já nacionalizado, pelas letras do canto já integradas no vocabulário brasileiro.

Do Bumba meu boi disse, no século XIX, o irreverente Padre Carapuceiro, tão rigoroso em seus julgamentos, ser um folguedo desengonçado, monótono, desenxabido, não raro desprimoroso. Não tinha razão o velho jornalista de costumes. Ao contrário: o Boi expressa uma ideia e um sentimento. Vê-lo e ouvi-lo é tanto mais saudável quanto estamos vendo e ouvindo nossa própria vida – a vida de regiões do Brasil, onde o Boi impera, e é amado, e é consagrado socialmente, brasileiramente.

1 Comentário on A louvação do Bumba meu boi

  1. adriana de holanda // 17 de fevereiro de 2023 em 10:59 //

    gratidão

Deixe um comentário

Seu e-mail não será publicado.


*