Meia-noite na Rádio Globo: quando o acaso abriu as portas para Djavan
Edberto Ticianeli
Stefan Zweig, em O Momento Supremo, narra treze episódios identificados como de síntese genial da história, quando o destino de muitos é decidido num momento. É o instante em que acontece alguma coisa capaz de interferir dramaticamente no futuro, algo que chamou de “a vontade mais alta da Humanidade”.
Esse momento estelar também acontece nas histórias de cada um de nós. Se forçarmos a memória vamos lembrar de algum flagrante em que o acaso nos surpreendeu, mudando o curso de nossas vidas. Por exemplo: vou atravessar uma rua e um amigo me chama pelo nome. Paro. Um segundo depois um automóvel desgovernado desrespeita a sinalização e passa por onde eu estaria se não fosse interrompido.
Ouvindo recentemente uma entrevista do alagoano e consagrado locutor esportivo Edson Mauro, que se a memória não me falha foi morador da Rua 24 de Fevereiro, na Ponta Grossa, em Maceió, despertei para dois “Momentos Supremos” em sua narrativa: um com ele e outro com ele e Djavan.
Edson Pereira de Melo, que depois adotou o Mauro, e Djavan Caetano Viana se conheceram no rádio esportivo alagoano. Djavan era ainda um jogador de futebol do juvenil do CSA e Edson Mauro iniciava nas transmissões do futebol pelo rádio. Se aproximaram mais ainda por conviverem também os mesmos ambientes na noite de Maceió: um como líder da banda LSD (Luz, Som e Dimensão) e o outro como festeiro.
Edson Mauro levou sua voz aos microfones muito cedo. Com 15 anos de idade foi admitido na Rádio Difusora, após uma “larga experiência” como improvisado locutor esportivo dos “rachas” na Praia do Sobral, em Maceió, onde utilizava um caco de coco como microfone, e como locutor noticiarista de banheiro, onde a acústica permitia modular a voz.
Certo dia, voltando para casa, após as aulas no Colégio Guido, passou na loja do irmão no Mercado Público e lá conheceu o jornalista e radialista Hélio “Careca” Lessa, que o encaminhou para fazer testes na Difusora. Aprovado, o diretor Sabino Romariz o contratou como estagiário.
Mas foi quando já estava na Rádio Gazeta, levado por Márcio Canuto, que aconteceu o momento supremo que influenciaria a carreira artística de Djavan.
No dia 12 de junho de 1971, a Rádio Globo transmitiu o jogo São Domingos x CSA, realizado no Trapichão com início às 20 horas. O interesse da emissora carioca se deu por ser esta partida a de nº 9 do teste 45 da Loteria Esportiva. O locutor enviado pela Globo, Sérgio Moraes, não conseguiu chegar a tempo em Maceió.
Do Rio de Janeiro, a direção da empresa pediu a Márcio Canuto que ajudasse a encontrar um substituto. Os principais narradores das rádios Gazeta, Difusora e Progresso não estavam disponíveis. Fariam a mesma jornada esportiva para suas emissoras.
Márcio Canuto indicou o jovem Edson Mauro. O desempenho dele agradou ao locutor e diretor da Rádio Globo Waldir Amaral, que o levou imediatamente para o Rio de Janeiro.
(Ouça aqui Edson Mauro narrando os cinco minutos finais do 1º tempo dessa partida).
Esse é o primeiro Momento Supremo: Sérgio Moraes atrasou seu voo e permitiu que Edson Mauro narrasse o jogo que o levou à Rádio Globo do Rio de Janeiro.
Segundo Momento
No final de uma noite de 1972, Edson Mauro ia começar, na Rádio Globo, o último bloco do programa Panorama Esportivo — dividia o microfone com o mesmo Sérgio Moraes que não conseguiu chegar a Maceió no ano anterior — quando foi chamado ao telefone e comunicado que tinha um alagoano na portaria querendo falar com ele. Soube que era o Djavan, seu amigo de Maceió.
O “Bom de Bola” recebeu Djavan, que lhe pediu ajuda para fazer contato com as gravadoras. Nos poucos meses que estava no Rio ainda não havia conseguido mostrar seus trabalhos a ninguém e estava disposto a retornar a Alagoas. Era sua última tentativa.
Edson Mauro adiantou que estava na rádio há somente um ano e que não conhecia ninguém do mundo da música, mas pediu que aguardasse ele terminar o programa para conversarem mais um pouco.
À meia-noite, Edson se despediu dos ouvintes e se voltou para conversar com Djavan. Segundos depois entra no local o radialista Adelzon Alves, que iniciaria seu famoso programa “O Amigo da Madrugada” minutos depois do noticioso “Seu Redator Chefe”.
“Caiu um raio”, disse Edson Mauro, recordando que Adelzon era produtor do João Nogueira, Clara Nunes e Beth Carvalho e vinculado à gravadora Odeon. “Eu nem lembrava do Adelzon com esse perfil de produtor. Era um colega que trabalhava na rádio e que a meia-noite chegava com os discos dele”.
Foi nesse momento que o maceioense batizado na Matriz de Santa Rita foi apresentado a Adelzon como um grande músico em busca de uma gravadora. Ficou acertado que voltariam a conversar às 4h da manhã, quando se encerrava “O Amigo da Madrugada”.
Na hora combinada, foram para um dos estúdios da Rádio Globo e Djavan, acompanhado por seu violão, conseguiu despertar a atenção do célebre radialista.
No mesmo dia, às 4h da tarde, Adelzon levou Djavan até à gravadora Som Livre, presidida por João Araújo (pai do Cazuza), que havia solicitado ao locutor a indicação de novos cantores para montar as trilhas das novelas da Globo.
Foi assim que Djavan deslanchou sua carreira. Gravou a música “Qual é?”, de Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle, sucesso na novela Os ossos do Barão. Foi exibida entre 1973 e 1974. Esse vínculo permitiu que gravasse dezenas de trilhas para novelas, mesmo quando já fazia sucesso internacional. Seu primeiro disco foi “A Voz, o Violão, a Música de Djavan“, lançado em 1976.
O acaso, que impediu Sérgio Moraes de chegar a Maceió para narrar uma partida de futebol, levou Edson Mauro ao Rio de Janeiro. O mesmo acaso fez com que Djavan procurasse o apoio do amigo numa meia-noite, no exato momento em que chegava ao estúdio Adelzon Alves, que lhe abriu as portas das gravadoras e o caminho para o sucesso.
Concordo com Stefan Zweig: a história é mesmo o espelho espiritual da natureza. Que o acaso continue a proporcionar bons caminhos para nossas vidas. Só os bons… Enquanto isso, cantamos: “Sabe lá o que é não ter, e ter que ter pra dar”.
Sensacional, que emoção para mim , ler este relato, fiel verdadeiro. No capitulo Djavan, as lembranças dos bailes em minha Uniao dos Palmares, na AAP Com o Luz Som e Dimensão e seu crooner já famoso na época o Djavan. No capitulo Edson Mauro, fui testemunha ocular dessa história como colega de trabalho de todos esses personagens. Nesta noite, neste jogo, partcipei noticiando pela radio gazeta, como plantonista (sala nacional dos esportes) o andamento e resultado dos demais jogos da rodada. Ao mesmo tempo em que ouvia a nossa transmissão da Rádio Gazeta, também ouvia com enorme emoção o amigo Edson Mauro pela Radio Globo, pois era por lá que eu pegava os resultados dos demais jogos pelo Brasil e jogava no ar interferindo ao vivo, na transmissao com a famosa vinheta, “loteria esportiva” Não lembro quem narrou este jogo pela Rádio Gazeta. Tinhamos Arivaldo Maia, Sabino Romariz, Reinaldo Cavalcanti um deles fez esta transmissão. O Edson, de folga neste dia, fez pela Rédio Globo, uma narração tão espetacular que, como ja foi dito, lhe rendeu, na mesma noite, um chamado para a Globo onde se tornou um dos melhores narradores esportivos do Brasil. Magnificas lembranças para mim.
Antológico!
Muito grato, prezado Ticianelli. O acaso não existe…
Belo texto, como sempre. Parabéns Ticianeli
Excelente material literário verdadeiramente bibliográfico, onde os participantes de um fato real têm entre si espiritualmente comprovada a presença de Deus. Eu que convivi nessa época, me lembro claramente de todos. Parabéns, Edberto Ticianelli.
Conheço essa história de perto Ticianeli. Edson saía da RG para a Globo, ao tempo em que Márcio Canuto de tirava da Difusora para substituir esse extraordinário narrador e a voz mais bonita do Rádio Esportivo do Brasil.
Nunca um atraso de avião,fez bem a tanta gente com talento,são coisas de Deus mesmo
Aloisio Alves, outro extraordinário narrador esportivo.
Dileto amigo,saudades de você.
Maravilha! parabéns meu amigo. Seus textos nos ajudam a compor e a manter a memória da nossa terra.
Não foi assim tão simples.
Djavan em entrevista ao Correio Braziliense, 06/04/2017:
“Você enfrentou dificuldades quando chegou ao Rio, disposto a conquistar seu espaço na MPB?
Inicialmente, não tive facilidade. Não conhecia ninguém, mas procurei me situar. O Adelson Alves era um radialista famoso naquela época que apresentava o programa O amigo da madrugada, na Rádio Nacional. Fui à emissora incontáveis vezes para mostrar o que estava fazendo. Até que um dia, me ouviu cantar. Mas me desencorajou, ao dizer que seu programa era voltado para o samba tradicional e que a música que eu fazia não se adequava à programação. Aí sugeriu que eu procurasse o João Melo, na Som Livre. O João também achou minha música ;estranha; e perguntou se eu não fazia algo semelhante aos sambas da dupla baiana Antônio Carlos e Jocafi, que estava em voga. Por meio dele, conheci Waltel Branco, que também era produtor da gravadora. Ele disse que, minha música realmente era estranha, mas que eu não mudasse nada.
Seu primeiro disco saiu pela Som Livre. Quem foi seu padrinho artístico naquele momento?
Por meio do João Melo e do Waltel, João Araújo, pai do Cazuza e diretor da Som Livre, tomou conhecimento de Fato consumado, uma das primeiras músicas que compus no Rio. Ele não só a inscreveu no festival Abertura, em 1975, como se tornou meu tutor. Ele, por exemplo, avalizou o aluguel do apartamento que passei a morar. Aí, pude trazer minha mulher para morar no Rio. Fato consumado ficou em segundo lugar no festival e as coisas começaram a acontecer para mim. “