A epopeia de um louco

Publicado no Diário da Manhã de 7 de setembro de 1943

Reconstituição facial de D. Pedro I mostra-o com nariz deformado em decorrência de suposta fratura. Foto de Cícero Moraes

Armando G. Wucherer
Publicado no Diário da Manhã de 7 de setembro de 1943.

Pedro I era um tarado. Descendia de uma família de anormais. O avô paterno, aquele pobre rei D. José, transmitira a seu pai, o visionário D. João VI, — sepultando na penumbra dos claustros de Mafra, a ansiedade política, bracejando, só, contra as calamidades que varriam a Europa, — uma trágica herança mórbida, que passaria de geração em gегаçãо,

Quando D. João VI nasceu, afirma Pedro Calmon, no seu admirável estudo a que deu o sugestivo título de “O rei do Brasil“, o seu pai envelhecera roído de remorsos, predisposto à apoplexia, lento de movimentos; e sua mãe, D. Maria I, cada vez mais devota, séria como uma abadessa, discreta como um ministro, pensava sobretudo na vida eterna.

A casa de Portugal era uma das mais débeis e enfermiças da Europa, segundo depoimento do cardeal de Bourbon.

Era natural, que herdeiro de tão acentuadas taras, o nosso Pedro I não fosse um homem normal. Ademais, sua mãe, D. Carlota Joaquina, não era uma mulher de princípios morais inatacáveis, traindo o marido até com os jardineiros das suas quintas…

Os gestos de Pedro I, a sua coragem desmedida, as suas aventuras amorosas enchendo uma época, denotavam nele uma moléstia que nunca foi estudada, mas que deveria ser irmã gêmea da loucura.

Armando Goulart Wucherer em 1930, quando era secretário da Prefeitura de Recife

A resolução conhecida com o nome de “Fico”, — resolução que traía um insubordinado; a sua renúncia ao grande Império que fundara do outro lado do Atlântico, foram impulsos de um anormal. Não há negá-lo. Foram esses impulsos, porém, que o projetaram nas páginas da história como um louco ou como um predestinado… Mas a sua epopeia, a página de fulgor de príncipe aventureiro, foi aquele gesto espetacular ás margens do regato múrmuro do Ipiranga, ao lado de um troço de soldados de cavalaria, em tarde de muito sol e muito brilho.

Nas margens do Ipiranga deu-se a execução teatral do primeiro ato desse imenso drama histórico, que começamos a escrever no Alto dos Guararapes, em 1649, e que depois. em 1817, já assume a forma concreta de organização política, sob a inspiração custódia do Padre Miguelinho, o Arcanjo S. Miguel das nossas estoicas aspirações de autonomia e liberdade.

Com o brado de rebeldia lançado em terras de São Paulo — Pedro I foi o louco criador do maior Império da América Meridional. revelando aquela bravura com que os seus avós bateram a ismaelitas e mouros, defendendo dos ímpios o pendão das Cinco Chagas, de Guimarães e Hierosolyma [Jerusalém], de Moçambique ao Brasil.

Obedecendo aos impulsos de seu coração e aos movimentos desordenados de seu cérebro, portador de várias heranças mórbidas, o filho cavalheiresco de D. João VI, realizou a sua maior epopeia, quebrando as cadeias que nos ligavam ao velho Portugal, que Napoleão não conseguiu conquistar.

Bem haja, pois, a epopeia desse louco sublime, que depois de nos legar uma pátria livre, foi pelejar pelo trono de uma brasileirinha morena, D. Maria da Gloria, nascida sob o céu de cobalto do Rio de Janeiro, cujo trono um outro tarado pretendia arrebatar.

***

O alagoano Armando Goulart Wucherer nasceu em Maceió em 3 de agosto de 1896 e faleceu, na mesma cidade, em 11 de julho de 1956, após a amputação de uma perna. Era filho de Alfredo Wucherer e de Honorina Wucherer.

Fez o curso primário no “Colégio Dias Cabral”, concluindo o ginasial no Liceu Alagoano e bacharelando-se em Direito na Faculdade do Recife. Na capital pernambucana foi secretário do prefeito e Diretor de Instrução Municipal. Era professor de Direito Penal na Faculdade de Direito de Alagoas.

Publicou “Canção do Tédio”, “Musa Tropical” e “Canto de Meu Destino”. Pertencia à Academia Alagoana de Letras.

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