Os inesquecíveis tempos antigos em Fernão Velho e Maceió
Alfeu Domingues, filho do famoso musicista alagoano Misael Domingues, recorda da sua infância em Alagoas
Alpheu Domingues
*Publicado no Diário de Pernambuco em 24 de junho de 1956 com título “Os Inesquecíveis”.
Naquela povoação, existia, perto da estação da Great Western, uma bodega, onde, entre outras coisas, vendiam-se bolacha, pão doce, caramelos, querosene, cachaça e pacaios (cigarros de fumo picado e charutos da pior qualidade).
Numa das paredes sujas do boteco, viam-se, numa caligrafia borrada, a seguinte frase: “Fiado hoje não amanhã sim”. O dia seguinte nunca chegava e a minha infantilidade não concebia como poderia ser aquilo.
A igrejinha de Fernão Velho, numa pequena colina, quando se aproximava o mês de dezembro, abria-se toda limpinha e caiada para desespero dos morcegos. Pelo Natal, vinha um padre de Maceió celebrar a missa do galo. Depois, descansava na casa de verão de meu tio Francisco Domingues, então administrador dos Correios de Alagoas, tomava uma canoa e seguia para Coqueiro Seco, a fim de repetir o ofício divino.
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Os festejos profanos tinham um sentido especial. Nas residências, o que se dançava, preferentemente, era o velho coco. Com acompanhamentos de ganzá e caracterizado por embigadas, algumas espetaculares. E que emboladas! A brincadeira começava cedo, entrava pelo dia e se prolongava pela noite toda. Cachaça, vinho de jenipapo ou de caju, eram as bebidas preferidas. Os de estômago mais delicado iam-se distraindo no vinhozinho de laranja, suave e gostoso.
Nas ruas, armavam-se barracas de todos os tipos: os jogos de azar não constituíam crime e o dinheiro era arriscado, impunemente, no bozó, ao som de uma algazarra infernal. Os dados, sacudidos dentro de um cilindro de folha de flandres ou de couro, decidiam a sorte dos festeiros. As moedas da época eram o vintém, o dobrão, o cruzado, o níquel de tostão, o dez réis, etc.
Do lado de cá de Fernão Velho à tardinha, a gente apreciava os lindos poentes do Coqueiro Seco. Iguais a eles, só os de Sanhauá, na capital paraibana vistos da balaustrada das Trincheiras.
Coqueiro Seco figura, hoje, na história da pesquisa do nosso petróleo, face à atuação e o fim trágico do engenheiro Bach, que ali residiu, com suas ideias e convicções de geólogo. Um dia a canoa, em que viajava o estrangeiro, emborcou, misteriosamente, na lagoa e o passageiro desapareceu para sempre. Essa narrativa foi feita por Costa Rego num dos seus aprimorados artigos. Bach afirmava que o petróleo é uma realidade nas Alagoas.
Diversos foram os fatos que me impressionaram na minha meninice, quase toda transcorrida em Maceió. Cito, por exemplo, uma viagem à cidade do Pilar, em 1899, na companhia de minha avó paterna, para assistir à primeira missa celebrada por meu primo padre Jonas Taurino. Viajamos em uma lancha grande, espécie de rebocador, que fazia o serviço de transporte entre a capital e o Pilar. Eu tinha quatro anos e me lembro de uma história que contaram, na ocasião, de um sacerdote estrangulado por um gato hidrófobo, na sacristia da igreja, antes de ir para o altar.
Era costume do meu tio e padrinho José Domingues Lordsleen, relojoeiro e diretor do Liceu de Artes e Ofícios, levar-me para passear. Ele seguia todos os anos para o Rio a fim de adquirir relógios e joias para sua casa comercial. E eu ia a bordo, quase sempre, dos vapores “Castro Alves”, “Fagundes Varela” e “Gonçalves Dias” — os de sua preferência — percorrendo a pé a grande ponte de ferro, que era como um promontório mar a dentro, para daí tomar um barco e alcançar o navio distante.
Meu tio não admitia que sendo eu filho de Misael Domingues, compositor e musicista, dos mais apreciados, não lhe seguisse os passos. E assim tratou de me matricular no curso de solfejo do Liceu de Artes e Ofícios. Tudo debalde, porque os meus pendores para essa arte nunca puderam ser levados a sério. O professor era um velho que solfejava com certa dificuldade e cochilava nas aulas, por sinal, noturnas; o discípulo era um fracasso, sem nenhuma receptividade e vocação para a música, conforme ficou provado, na cidade de Jaboatão, em Pernambuco, anos depois, tendo por mestre o meu próprio pai.
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Como toda criança, tinha o vício da chupeta. Custei a largá-lo, o que muito preocupou minha avó.
Ela tentou vários processos para que eu me visse livre do consolador. Escondia-o. Punha substâncias amargas no bico da borracha. Ralhava. Ameaçava. Nada conseguia. Então idealizou mandar buscar um caranguejo — decápode que era o meu terror — e soltou o crustáceo dentro do quarto obrigando-me a fazer companhia àquilo que, para mim e na minha idade, parecia um monstro.
A realidade é que o processo vingou. Deixei definitivamente a chupeta, inseparável até aquele atribulado dia.
***
Tenho presente ainda hoje dois castigos que minha avó aplicou-me, valendo-se de uma perna de corda. Em outras palavras: duas surras.
Uma, porque descobriu que eu andava às voltas com cigarro, fumando escondido. Outra, porque não observei uma advertência e teimei em subir numa escada para pregar umas bandeiras no telhado, a pretexto de qualquer comemoração. Prometera-me uma surra, caso eu viesse a cair e, como isso acontecesse, ela cumpriu imediatamente a palavra. O provérbio além da queda coice nunca foi tão cabível. Fora disso, não me recordo de ter apanhado. Os carões, porém, eram frequentes.
Fui operado das amídalas pelo médico dr. Manuel Duarte, então governador do Estado. A operação foi feita no terraço do próprio Palácio dos Martírios. Sentaram-me numa cadeira de menino; colocaram uma toalha no pescoço; e o cirurgião em pouco tempo arrancava as glândulas por processo que hoje arrepiaria cabelos. Anos depois, um esculápio do Rio de Janeiro, descobriu que ainda havia um restinho a fazer daquela intervenção, mas eu recusei outra operação por via das dúvidas…
A classe médica em Alagoas era representada por expoentes da medicina e da cirurgia como Sampaio Marques, Costa Leite, Domingos Cardoso e outros. Costa Leite era o carniceiro inveterado, que operava os doentes sob o efeito do clorofórmio. Serrava pernas, cortava braços, tirava seios, pintava o diabo com o bisturi. O homem — como os demais cirurgiões de todos os tempos — tinha a volúpia do corte.
Farmácias existiam muitas, mas as mais familiares eram a Drogaria Calmon e a farmácia de Firmino Vasconcelos, à rua do Comércio. Quando digo familiares quero dizer do meu conhecimento e da minha família, que era freguesa nessas duas boticas.
Firmino Vasconcelos era um cidadão popular em Maceió. Sempre contando histórias engraçadas, com o seu bigode, que parecia de arame, vendia-me de vez em quando açúcar candi que era a minha paixão. Sua farmácia ficava nas proximidades da relojoaria de meu tio e do mesmo lado onde tinha a fábrica de cigarros denominada Fábrica Moraes.
Defronte, Dona Zefinha Zanotti vendia fazendas por côvado e por preços muito distantes dos de hoje… Ela, como se vê pelo nome, descendia de italianos e chamava a atenção por um sinal de cabelo que tinha no rosto.
De uma feita, ouviu-se em toda a capital alagoana um estrondo parecido com um tiro de canhão. Todo mundo correu para ver o que se passava. Logo se soube que o velho sobrado da velha italiana Madalena, lá para os lados do mercado, havia desabado. Foi um acontecimento para mim, vendo aquelas paredes por terra, reduzidas à caliça.
Meu pai, que continuava viúvo residindo em Pernambuco, onde desempenhava cargos atinentes à sua profissão de engenheiro civil, tinha por norma ir a Maceió todos os anos para visitar parentes, inclusive, sua mãe, minha avó, que me criava. Assim ali esteve em 1896, 1897, 1898 e 1899. Numa dessas viagens comprou uma casa no povoado de Fernão Velho, no valor de quatro contos de réis, cuja escritura foi passada em nome de seus filhos, Misael, Delia e Alfeu. Esta casa foi vendida posteriormente.
Em Maceió, sobretudo por ocasião das festas de São Benedito, do Poço, da Levada, apareciam os célebres carrosséis armados nos pátios das igrejas. Eram a minha diversão preferida. Só nunca consegui alcançar a tal argolinha segura numa vara com um laço de fita. Meu braço ou era curto demais ou eu não tinha mesmo sorte para aquelas conquistas. A música que mais se tocava nos realejos dos carrosséis sempre foi essa imortal valsa “Sobre as Ondas”. [ouça abaixo].
Quando colocaram a pedra fundamental da construção do Teatro Deodoro, lá estava eu no meio do povo assistindo à festa. Fiquei muito espantado quando vi colocarem num baú de flandres moedas e jornais maceioenses: “Gutenberg”, “O Evolucionista” e outros. O primeiro, era de propriedade e direção do então deputado federal Eusébio de Andrade, amigo do meu pai e dava umas boas notícias todas as vezes que a aparecia uma composição musical de Misael Domingues.
***
Nunca me esqueci da matança de inocentes carneiros para as buchadas em Fernão Velho. Aquelas marteladas na cabeça dos pobres bichinhos e os gemidos aflitos doíam-me no coração. Para não dizer que nunca comi carne de carneiro, fi-lo uma vez na minha vida, e isso mesmo enganado, num almoço oferecido pelo saudoso agrônomo Fernando Costa, quando interventor no Estado de São Paulo ao então ministro da Agricultura agrônomo Apolônio Sales.
Quero também mencionar uma espetacular queda, sem maiores consequências, quando procurava saltar de um bonde puxado a burro, na Rua Nova [atual Barão de Penedo] na cidade de Maceió. O bonde ia numa direção e eu, querendo imitar homem, saltei em direção oposta. Fiquei esparramado no calçamento e o veículo prosseguiu no seu destino.
Jamais tive jeito para representar em teatrinhos, declamar versos ou consertar objetos quebrados. Mas gostava de ouvir, quando a poetisa alagoana Rita de Abreu, conhecida por Rosália Sandoval, declamava, em casa de meu tio, na Levada, os versos de sua própria autoria.
E assim decorreu minha meninice sob os cuidados de quem me criava e de dois tios por parte de pai. A essas três pessoas, devo os fundamentos de minha formação.
Eu que havia chegado a Maceió criança de peito, sem mãe, amamentado por uma preta, mulher de Norberto Costa, porteiro dos Correios, no ano de 1895, com procedência de Garanhuns, onde meu pai era engenheiro da estrada de ferro em construção (Estrada de Ferro Sul de Pernambuco), deveria voltar para a sua companhia no ano de 1906, antes de completar 11 anos. E assim sucedeu. No dia 1° de março daquele ano, meu pai, já casado em terceiras núpcias, trazia-me para Jaboatão.
E no dia 6 de março de 1906, matriculava-me no colégio particular do dr. Alberto Paes Barreto, onde, na companhia de meu irmão mais velho — Misael Domingues Júnior — iniciava nova vida, muito diferente, mais realística, mais responsável do que aquele que o destino me reservara em Alagoas.
O pai um grande compositor, o filho um escritor memorias da familia.
Que leitura saborosa! O autor do texto tem um talento e tanto para evocar um lugar como se aí estivesse o leitor, gente que parece estar a nossa frente, situações e fatos como se eu também estivesse lá. É um puro deleite! E, quanto a Fernão Velho, eu sempre fiquei apaixonado por esse lugar, desde 1978, que foi quando cheguei em Maceió. Muitos anos depois, uns dez atrás, levei lá minha amada Vany que também ficou encantada com o lugar, achando esse bairro semelhante a uma cidadezinha do interior.