Alagoas e os combustíveis automotivos: Usga e o Dispositivo Chambrin

Chambrin e Jarbas Oiticica em Maceió no ano de 1976

O primeiro combustível automotivo a colocar Alagoas em evidência nacional no campo da pesquisa tecnológica foi o álcool.

Mesmo se tendo registros da sua produção já em 1805 e da sua utilização como combustível de motores em 1860 por Nicholas Otto nos EUA, o álcool somente teve o seu reconhecimento e uso em larga escala durante a 2ª Guerra Mundial, no início da década de 1940, em substituição à gasolina e ao diesel.

Essa possibilidade já era conhecida na Europa nos primeiros anos do século XX. Na Alemanha, em 1903, várias máquinas funcionavam com Eletrina (50% de álcool desnaturado e 50% benzol) ou Leuchtspiritus (cerca de 35% de hidrocarbonetos benzênicos, um pouco de naftalina e o restante de álcool).

No ano anterior, na França, durante o Concurso Internacional dos Motores e Aparelhos, foi utilizado álcool desnaturado como combustível conseguindo-se bons resultados. Um desses combustíveis, o Alkolumine, foi fabricado industrialmente e comercializado.

As primeiras experiências do governo do Brasil com o etanol como combustível aconteceram em 1925. Funcionou em um automóvel adaptado para o uso do álcool etílico hidratado. Esses testes foram realizados pela Estação Experimental de Combustíveis e Minérios, órgão que deu origem ao Instituto Nacional de Tecnologia.

O Cachacinha, movido a álcool em 1925

O interesse brasileiro em combustíveis alternativos existia por motivação econômica. Na época, com a crescente utilização de automóveis, havia aumentado exponencialmente o consumo de gasolina, que era importada dos Estados Unidos. Produzir um combustível nacional levaria o país a economizar divisas e a ter autonomia energética.

Para se ter uma ideia desse consumo, Pernambuco, que tinha importado um pouco menos que 5 mil contos de réis em gasolina no ano de 1925, passou a gastar no ano seguinte 9 mil contos.

Nos estados produtores de açúcar e álcool, logo após o fim da 1ª Guerra Mundial, a pesquisa se dava por outra motivação: vencer a crise que atingia a indústria e a agricultura, que haviam perdido o mercado consumidor externo. Crise que desembocou na depressão da década de 1930.

Com esse intuito, vários estudos eram conduzidos, principalmente em usinas de Pernambuco e São Paulo. Em Alagoas as primeiras pesquisas começaram em 1921 na Usina Serra Grande, no município de São José da Laje.

O empreendimento, que pertencia à firma Carlos Lyra & Cia., optou por seguir uma linha de pesquisa própria a partir de investimentos em equipamentos e tecnologia obtidos na Alemanha, de onde também veio o técnico responsável pelo projeto da destilaria na Usina Serra Grande. Adolf Karl Emil Warnecke era o diretor técnico da fábrica de equipamentos Golzern-Grimma.

Seis anos depois, em maio de 1927, a Serra Grande, usina fundada em 1892, anunciou ao mercado que iniciaria a produção de Usga, um combustível com excelente performance.

Industrial Carlos Lyra

A divulgação desse combustível colocou a Carlos Lyra & Cia. em destaque no meio industrial brasileiro, possibilitando nova expansão na usina (a primeira aconteceu no início da década de 1920). Isso ocorreu com a constituição da Sociedade Anônima Usina Serra Grande em 11 de abril de 1933. O capital foi formado com a participação de Severina Pereira Lira, Carlos Lira Filho, Cônego Benigno Lira, José da Rocha Cavalcanti, Alfredo Bastos Tigre, Salvador Pereira de Lira, Augusto Eugênio Paashaus, Valdemar da Silva Pontes, João de Oliveira Melo e João Fernandes da Silva Tavares.

Ainda em 1933, no dia 1º de junho, foi criado o Instituto do Açúcar e do Álcool (Decreto nº 22.789). Resultado da presença crescente do açúcar e do álcool brasileiro no mercado.

Usga

O combustível batizado de Usga, iniciais de Usina Serra Grande de Alagoas, era o resultado da mistura de álcool etílico, éter etílico e uma pequena porcentagem de óleo de mamona (rícino), responsável pela ação neutralizante e lubrificante, contribuindo para retirar do álcool seu efeito corrosivo.

A base dessa fórmula já era utilizada comercialmente em outros países, a exemplo do Natalite na África do Sul (45% de éter e 55% de álcool etílico). Este combustível e outros semelhantes foram submetidos a teste público em Recife. O melhor rendimento do Usga foi atribuído à proporção dos componentes utilizados na mistura. Seu preço na bomba era até 50% menor que o da gasolina importada dos EUA.

A Serra Grande já produzia, além do açúcar e da aguardente, o álcool e o éter para outros fins. Precisou somente estabelecer o plantio da mamona.

Usina Serra Grande 1933. Gravura de Percy Lau publicada no Diário de Pernambuco

Com o início da produção de Usga em escala industrial, ainda em 1927, a sua comercialização atingiu números expressivos e animadores para a empresa. O seu primeiro posto de abastecimento foi instalado na Praça da Independência (Praça do Diário), em Recife, às 16h30 de 23 de junho. Era o primeiro do país a oferecer combustível nacional.

Para divulgar o produto, a empresa distribuiu gratuitamente por quatro dias (23, 24, 25 e 26) 10 litros de combustível Usga por automóvel. Em Maceió, ao mesmo tempo, a primeira “bomba” foi instalada na Casa Americana (a licença municipal foi publicada em 3 de setembro).

O registro da marca foi realizado com o Depósito nº 7.142 de 16 de março de 1927, como informou o Diário Oficial nº 69 do Rio de Janeiro, em 20 de março de 1927.

Depois desta campanha, o litro era vendido a 500 réis. A gasolina importada a 900 réis. Em 1930, com desvalorização do açúcar, o litro chegou a 400 réis, enquanto a gasolina estava em 1.000 réis. Em 1931, o açúcar recuperou seu preço no mercado internacional e o Usga foi para 700 réis por litro.

Em Maceió, a bomba da Casa Americana também se esforçava para promover o combustível. Suas qualidades foram testadas no dia 12 de julho de 1927, quando foi promovida uma competição para demonstrar a economia do Usga. Venceu um automóvel Ford.

Inauguração da primeira bomba de Usga em Recife

A Casa Americana, de Guilherme Gustavo Corner, ficava na Rua do Comércio, 147 (onde depois funcionou a Movelaria Carioca da família Lages), e negociava com automóveis, pneumáticos (representava a marca Dunlop), motores, correias, tacos, lançadeiras, máquinas de escrever, vitrolas, discos, acessórios de automóveis, motocicletas, agência de vapores e seguros, material elétrico, bombas, óleos, gasolina, motores para iluminação, balanças etc.

A campanha de divulgação do novo combustível foi maciça nos jornais pernambucanos, principalmente no Diário de Pernambuco, controlado pelo engenheiro químico Salvador Pereira de Lyra (filho de Carlos Benigno Pereira de Lyra), o mesmo proprietário da firma Carlos Lyra & Companhia, a fabricante do combustível.

Além de conseguir colocar o produto no mercado, a propaganda levou à popularização da marca Usga a tal ponto que a partir do carnaval de 1928, em Recife, era associada à aguardente como galhofa. A troça “Mamãe, Usga engorda?” foi uma dessas manifestações daquele ano. Até uma marcha foi composta como o nome Usga.

O responsável na Usina Serra Grande pela propaganda do Usga era o engenheiro agrônomo Salvador Nigro.

Em 1929, 500 automóveis em Recife tinham optado por utilizar diariamente combustível à base de álcool com um consumo médio mensal de 450 mil litros. Em meados do ano seguinte a usina já produzia 24.000 litros por dia.

Segundo informações do Fomento Agrícola de Pernambuco, no biênio 1929/31 foram fabricados 3 milhões de litros do combustível, quase todo consumido em Pernambuco.

Como Usga era um combustível que competia com a gasolina, não teve vida fácil com quem realizava o seu transporte, distribuição e comercialização no Nordeste.

Ainda em 1927, quando foi lançada o Usga, a Great Western obteve do governo autorização para elevar a tarifa (aumento de 100%) sobre o seu transporte e “outros sucedâneos similares da gasolina”. A guerra estava declarada.

Esse descompasso de tarifas praticamente proibia a circulação de Usga. Com o protesto da Usina Serra Grande e com o apoio de vários parlamentares o ministro da Viação reconsiderou o injusto privilégio concedido às companhias americanas e inglesas e uniformizou os valores. Lideraram essa campanha os governadores de Pernambuco e Alagoas, Estácio Coimbra e Costa Rego, respectivamente.

Moacir Santana, no livro Contribuição a História Açúcar em Alagoas, informa que em abril de 1933 estavam instaladas e funcionando as seguintes bombas de Usga: três no Recife; uma em Caruaru, uma em Garanhuns, duas em Maceió, uma em Serra Grande e uma em União dos Palmares.

Na década de 1930, com ampliação da utilização do álcool combustível, principalmente por força do Decreto 19.717, de 20 de fevereiro de 1931, que obrigou a mistura de 5% de álcool nacional à gasolina importada, seu preço começou a subir em função da sua extração direta da cana.

O álcool empregado no combustível era o residual, extraído do melaço, um subproduto da fabricação do açúcar. Isso diminuía em muito o custo de produção. Para atender a demanda crescente, parte do álcool passou a ser produzido diretamente a partir da cana, com um custo bem maior.

Outro fator que atingiu em cheio o Usga foi a retomada do preço do petróleo a patamares bem baixos após a superação da depressão do início dos anos 30. Com isso, a gasolina passou a ter preços mais competitivos.

Unidade de fabricação de Usga na Usina Serra Grande

Diante dessa competição, nos últimos anos da década de 1930 a utilização de Usga caiu vertiginosamente, voltando a ser utilizada nos primeiros anos da década seguinte por causa da guerra e o consequente racionamento imposto à gasolina, requisitada para fins militares.

Mesmo nesse período da 2ª Guerra Mundial, o combustível mais utilizado no Brasil era o gás resultante da queima incompleta de combustíveis sólidos (madeira, carvão e outros). Entretanto, em Pernambuco e Alagoas o álcool carburado ampliou seu uso.

Um decreto do interventor federal em Alagoas de setembro de 1941, cumprindo orientação da Comissão de Racionamento de Combustível Líquido, proibiu o funcionamento das bombas de gasolina aos domingos e feriados. Nos dias úteis funcionavam somente entre 7h e 19h. Também não se podia utilizar a gasolina em instalações fixas. Determinava ainda que os automóveis oficiais do Estado utilizassem somente Usga ou álcool. Gasolina somente se misturada ao álcool na proporção de 5 x 1.

Em maio do ano seguinte, a mesma Comissão já elaborava novas medidas de racionamento de gasolina e convocava os produtores de Usga para que garantissem que o produto não faltaria. Deliberou que nas localidades servidas por estradas de ferro fossem supressas as linhas de ônibus e caminhões que usassem somente a gasolina.

Em meados de 1942, alguns articulistas defendiam nos jornais as vantagens do álcool combustível sem muito conhecimento da experiência promovida pela Usina Serra Grande. Como resultado dessa desinformação, publicou-se em vários periódicos uma das maiores gafes jornalísticas da época.

Sempre acompanhado de um discurso patriótico, os jornalistas faziam campanha para a substituição do produto importado pelo nacional: “temos outros combustíveis, como a usga, a mandioca, o babaçu e inúmeros outros produtos que se apresentam em abundância em diversas regiões do país”, publicava A Manhã (RJ) de 6 de junho de 1942.

Completava a informação detalhando que “a usga, abundante em Sergipe, Paraíba, Pernambuco e Alagoas, é de larga aplicação para movimentação de motores de explosão; substitui com vantagem o álcool e a gasolina”.

Não sabiam que a marca Usga era a sigla de Usina Serra Grande de Alagoas e não um vegetal.

Com o fim da 2ª Guerra Mundial, os interesses das petroleiras predominaram e o Brasil esqueceu o álcool motor, que somente foi ressuscitado na década de 1970, com a crise do petróleo.

Em 1961 ainda era anunciado o Usga nas publicidades da Usina Serra Grande, mas não mais se apresentava no mercado como um combustível alternativo à gasolina.

***

Dispositivo Chambrin

Em julho de 1974, em plena crise do petróleo, circulou na imprensa mundial a informação de que nas ruas de Rouen, cidade da Normandia na França, circulava um automóvel Citroën utilizando um motor hidráulico, com 60% de água e 40% de álcool.

O responsável pela façanha era o engenheiro mecânico francês Jean Pierre Marie Chambrin, um premiado e reconhecido inventor. Ele havia instalado no automóvel um sistema que, em resumo, aquecia a mistura vaporizada de álcool/água utilizando o calor dos gases de exaustão, em seguida esse vapor quente, enriquecido pelo hidrogênio separado da água, recebia um pouco de ar ambiente e era levado até a câmara de combustão.

No Dispositivo Chambrin, um reator, era onde acontecia a recuperação desse calor da exaustão e se separava o hidrogênio da água. Essa parte do processo era a “caixa preta” do inventor, que nunca revelou seu segredo. Segundo ele, sob certas condições, esse processo tornaria possível o funcionamento de motores com água pura.

Jean Chambrin e Jack Jojon em 1974 na França

No jornal Automobile, em uma edição de julho de 1974, Jack Jojon, sócio de Jean Chambrin, explicou o funcionamento do dispositivo:

“Há duas partes neste motor. Um é mecânico, o outro eletrônico. A parte mecânica é uma câmara de craqueamento do tipo pote Séguin. A parte eletrônica, a segunda, e aquela em que enviamos uma tensão muito alta, vários quilovolts abaixo de alguns pico-amperes (pico: prefixo que se coloca na frente do nome de uma unidade divide por um bilhão, ou seja, 1012, nota) e em alta frequência. O princípio é este: você sabe que a água “quebra”, se transforma em oxigênio e hidrogênio por volta de 2.000 a 2.300°C. É, portanto, necessário baixar esta temperatura utilizando quer elementos físicos, este é o caso da escolha que fizemos, quer químicos, este é o caso do sistema utilizado em futuros reatores de temperatura muito elevada, ou em utilizar quatro a cinco reações a 730 ou 1050°C, a água vai rachar, para recuperar o hidrogênio e o oxigênio”.

Esse invento, que vinha sendo testado por Chambrain desde 1957, começou a ser patenteado na França ainda em 1974 tendo como autores Jean Chambrim e Jack Jojon, seu amigo que depois se transformaria em inimigo.

No Brasil, quem se interessou por estes experimentos foi o engenheiro agrônomo Jarbas Elias da Rosa Oiticica, de tradicional família ligada à produção de álcool e açúcar em Alagoas (Usina Santa Clotildes).

Dirigindo desde de 1966 a Estação Experimental da Cana de Açúcar em Alagoas e Coordenador do Programa Nacional de Melhoramento da Cana-de-Açúcar (Planalsucar), o professor Jarbas Oiticica estava na França, em 1975, participando de estágio promovido pela Agência para a Cooperação Técnica, Industrial e Econômica, quando tomou conhecimento do invento e marcou um encontro com Chambrin.

Viu no seu Dispositivo o mecanismo que poderia inserir definitivamente o álcool como combustível para motores. Ao explicar ao engenheiro francês o potencial volume de álcool produzido no Brasil, despertou nele o interesse de deixar a França, onde não vinha recebendo apoio ao seu invento.

Percebendo essa situação, Jarbas Oiticica o convidou a levar a sua descoberta ao Brasil, onde haveria a possibilidade de negociá-la com o governo brasileiro. Explicou que pretendia testar o Reator com o álcool da cana-de-açúcar num motor ali fabricado.

Jarbas Oiticica não escondia que ele e mais alguns usineiros tinham interesse em adquirir a patente do invento, caso ele funcionasse.

Chambrin deixou a França sem alarde para fugir das pressões e chegou ao Brasil, acompanhado de sua mulher e de seu assistente, René Lods, em 7 de maio de 1976. Estabeleceram-se em Rio Largo, Alagoas, na Fazenda Riachão da Usina Santa Clotilde (tempos depois foi hóspede do Luxor Hotel em Maceió).

Com apoio da Estação Experimental e da Usina Santa Clotilde, Chambrin recebeu um automóvel Ford Corcel novo, movido a gasolina, para instalar sua unidade reatora no motor e se transformar no carro modelo para demonstrações.

O primeiro teste oficial aconteceu no dia 21 de junho de 1976, com o Corcel “movido à água” percorreu 30 quilômetros, entre a Estação Experimental e o Palácio dos Martírios, transportando cinco pessoas (Chambrin, que dirigia o veículo; governador Divaldo Suruagy, senador Teotônio Vilela; deputado federal João Pedro Carvalho Neto, presidente da Comissão de Minas e Energia; Jarbas Oiticica e o intérprete Daniel). Cada litro da mistura de água com álcool dava uma autonomia de 9,4 km ao veículo. A experiência foi acompanhada por repórteres dos principais jornais do país.

Chambrin e Jarbas Oiticica em Maceió no ano de 1976

Dias depois, o mesmo evento se repetiu em Recife a pedido do governador Moura Cavalcante. O Corcel foi rodando até a capital pernambucana (235 km).

Após uma breve viagem à França — para renovar seu visto de permanência —, apresentou em outubro seu experimento aos técnicos do Parque Regional de Motomecanização da 7ª Região Militar em Recife, obtendo a aprovação de engenheiros e técnicos de diversas instituições de Pernambuco.

Mesmo contando com uma aprovação atrás da outra, as solicitações de novos testes não paravam. As desconfianças sobre o sistema continuavam a tal ponto que o então secretário de Tecnologia Industrial do Ministério da Indústria e Comércio, José Walter Batista Vidal, se referia ao inventor francês como um lunático.

Mesmo assim, conseguiu, em 5 de abril de 1977, ser contratado por quatro meses pela Empresa Brasileira de Transportes Urbanos (EBTU) para adaptar seu mecanismo a um ônibus, fornecido pelo contratante, num prazo de quatro meses. Receberia R$ 13 mil de salário, diária e um carro para uso pessoal.

Chambrin estabeleceu no contrato que precisava do fornecimento de um ônibus, mecânicos e tradutor. Por falha, não estabeleceu prazo para esse provimento. A EBTU, que nunca enviou o motor (Jarbas Oiticica foi quem forneceu um caminhão da Usina Santa Clotilde), contraditoriamente fiscalizava a adaptação.

Quando o trabalho estava concluído, em maio de 1978, dois técnicos da EBTU estiveram em Alagoas e rodaram com o veículo. Relataram que o teste não foi conclusivo por desconhecerem o funcionamento completo do reator, que, obviamente, Chambrin se negou a revelar.

O motor foi então retirado do caminhão e enviado para a Universidade Federal do Ceará, para onde seguiu também o inventor francês.

Nesse período, por falta de recursos, o contrato foi transferido para o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Para complicar mais a situação, o presidente da EBTU pediu demissão.

Enquanto isso, o motor adaptado enferrujava em Fortaleza por falta de equipamentos e ferramentas para os necessários procedimentos de teste. Chambrin, que aguardava o cumprimento do contrato, ficou surpreso ao constatar que suas despesas no hotel estavam sendo descontadas das mensalidades a que tinha direito. Sem condições de permanecer no Ceará, abandonou o projeto e voltou a Maceió.

Chambrin em Porto Alegre

Percebendo que seu invento não mais encontraria apoio no Nordeste, Chambrin resolveu tratar de outro projeto, o do coração. Assim, deixou Maceió em 15 de outubro de 1978 e desembarcou em Porto Alegre para reencontrar sua namorada, a socióloga e viúva Maria Elena Knüppelm, que trabalhava para a Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL) e no Rio Grande do Sul era servidora da Fundação de Economia e Estatística.

Chambrin tinha deixado sua esposa na França em uma de suas primeiras viagens para regularizar o visto de permanência e estava instalado no Luxor Hotel em Maceió, onde a conheceu e iniciou relacionamento com Maria Elena, também professora de francês.

Croqui do Dispositivo Chambrin publicado no jornal Zero Hora

Foi Maria Elena que, no ano seguinte, mediou o contato do inventor com o secretário de Administração do Rio Grande do Sul, Olímpio Tabajara, a pedido do governador, que demonstrou interesse no projeto e o contratou com o aval do presidente general João Batista Figueiredo.

Desde então, a proposta da construção do Reator passou a ser tratado pelo ministro chefe da Casa Civil da Presidência da República, general Golbery do Couto e Silva, como “de Alta Reserva” e acompanhada de perto pelo Serviço Nacional de Informação do governo militar.

Os trabalhos passaram a ser realizados, a partir de 14 de julho de 1980, na oficina do II Centro de Suprimentos e Motomecanização da Brigada Militar do Rio Grande do Sul. Um galpão de 150 metros quadrados, com oito metros de altura, construído nos anos 60 no quartel da Escola de Bombeiros (Santa Cecília, Porto Alegre).

Quem ficou encarregado de acompanhar os trabalhos para o governo foi o secretário Estadual de Obras, arquiteto Waldyr José Maggi, genro do senador Daniel Krieger, do Rio Grande do Sul.

Foi ele quem propôs a Chambrin a sociedade que resultou, em 13 de maio de 1981, nas empresas Agal Reatores e Changer Tecnologia e Patentes. Participavam ainda desse empreendimento os seguintes investidores: João Carlos de Barros Krieger, José Luís Flores da Cunha e Maria Elena Knuppelin de Almeida.

Maggi mantinha contato com o general Golbery do Couto e Silva e com o general Octávio Medeiros, do SNI, e com eles estabeleceu o acordo de confidencialidade com suas empresas e o Governo do Rio Grande do Sul. O projeto tinha sido enquadrado como “experiência científica de valor excepcional”.

Além do SNI, o governo militar criou um grupo técnico para supervisionar os trabalhos. Dele participavam o coronel Lício de Freitas Pereira (SNI), especialista em questões energéticas, e o engenheiro aeronauta Fleury Pereira Filho, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Chambrin morou em Porto Alegre entre 1978 e 4 de novembro de 1989, quando faleceu

A sociedade com Maggi, contando com outras influências políticas, também ajudou o francês a resolver seu problema de visto de permanência no Brasil, que o obrigava a sair do país a cada três meses. Recebeu o visto permanente em 8 de abril de 1981.

Cumprindo o contratado, Chambrin, ainda em 1981, colocou em funcionamento dois automóveis — um Corcel (9,4 Km por litro) e um caminhão da Brigada Militar (4,5 Km por litro). Por este primeiro serviço, recebeu do sócio parte do lucro, R$ 29,9 mil. Após novas adaptações, recebeu, em 1982, mais R$ 104,8 mil.

Surgiu então o problema do registro da patente do invento, que tinha sido solicitado ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) em 14 de maio de 1981, no dia seguinte à constituição das empresas.

Por solicitação de “interesses superiores”, os pedidos internacionais de patente tinham sido ampliados de 29 para 40 países. O Estado do Rio Grande do Sul, que já havia investido nestas cartas de patente R$ 523,3 mil, se negava a pagar os R$ 785 mil restantes.

Tinham desistido do projeto? Essa é a possibilidade maior. Sinal disso era a falta de combustível nos testes e as exigências do engenheiro aeronauta Fleury Pereira Filho, que cobrava a correção de falhas técnicas para que fossem autorizados novos testes.

Chambrin não gostou do que ouviu e reclamou a Maggi do tratamento recebido, se dizendo desmoralizado pelo fiscal do projeto. Se referia a Fleury como um “bitolado” e insinuou que estava havendo sabotagem, com motores sendo desregulados e com carros circulando sem a sua autorização.

Percebendo que também não podia confiar no sócio, anulou as procurações que o autorizavam a encaminhar os registros de patentes no exterior e rompeu a sociedade.

Do outro lado, Maggi, o SNI e o governo do Rio Grande do Sul passaram a desconfiar que quem manobrava era o francês, que poderia estar negociando com outros o seu invento. Citavam a visita à oficina de um representante de uma montadora.

Com o impasse e em nome da segurança nacional, o Palácio do Piratini resolveu lacrar a oficina e evitar possíveis prejuízos maiores. No dia 8 de dezembro de 1982, Chambrin chegou para trabalhar e um soldado armado o mandou dar meia-volta e ir embora.

Oficina do II Centro de Suprimentos e Motomecanização da Brigada Militar do Rio Grande do Sul. Ficou fechada por décadas a pedido do SNI

No início de fevereiro de 1983, Fleury esteve em Porto Alegre e em duas reuniões com o inventor propôs levar os motores para São Paulo, onde seriam analisados sem a interferência de Chambrin. Tudo isso sem divulgação alguma.

A resposta veio em carta endereçada ao CNPq, esclarecendo em oito páginas que temia pela eficácia dos testes pois estava sem entrar na oficina a três meses, indicando que os motores precisariam de alguns ajustes. Como não recebeu resposta, moveu uma ação judicial contra o Estado para reaver os equipamentos retidos no galpão lacrado.

Também na Justiça foi parar o desentendimento dos sócios na divisão do patrimônio das empresas.

Chambrin ainda tentou se reestabelecer em Maceió, para onde voltou em 1983, pretendendo vender a instalação do seu dispositivo em ônibus. Não deu certo por falta de matéria prima e por se ter uma frota composta de diversas marcas de motores. Voltou a Porto Alegre em 1985.

Somente em abril de 1988 foi que a Justiça autorizou a abertura da oficina lacrada para decidir sobre a devolução das peças à Cahambrin. Descobriu-se então que parte das peças do Reator havia sumido e os veículos tinham sido depenados.

Voltou-se a lacrar o galpão e abriu-se inquérito par apurar o sumiço das peças. Cinco soldados foram indiciados pela falta de 12 pneus, mas, por falta de provas, o inquérito foi arquivado.

O galpão foi reaberto definitivamente em 2 de outubro de 2012. Surpreendentemente, a Procuradoria Geral do Estado (PGE), que acompanhou o ato, esclareceu que inexistia uma interdição judicial para manter o galpão lacrado por todo este tempo.

Sem renda alguma, Chambrin passou a viver na casa de Maria Elena, realizando tarefas domésticas. Era tão recluso que se chegou a desconfiar que ele tinha sido sequestrado ou assassinado com o sumiço do corpo.

Faleceu deitado, com a cabeça no colo da companheira, no dia 4 de novembro de 1989, vítima de um infarto. Tinha 64 anos de idade. Maria Elena faleceu em 1996, por problemas respiratórios, sem ter acesso, como herdeira, aos bens do seu companheiro.

Chambrin em uma de suas últimas fotografias

Maggi conseguiu resolver as pendências das empresas e em 2000 assumiu o controle das duas, após adquirir as cotas do filho único de Maria Elena. Pagou ainda por muito tempo os tributos devidos. Tinha a esperança em fabricar e vender o Reator Chambrin e seus componentes, com patente registrada em seu nome no INPI em 1990. Quanto ao parecer do CNPq sobre o invento, não se teve mais notícia dele.

O segredo do Reator permanece enterrado com seu inventor no túmulo 625313 do Cemitério João XXIII, em Porto Alegre.

Entretanto, uma pista sobre o que levou o poder militar a tratar o invento como assunto de segurança nacional e mantê-lo sob extremo controle pode ser encontrada na entrevista concedida ao Jornal do Brasil (21 de janeiro de 1990) pelo advogado de Chambrin, Renato Móttola: “Por que o SNI tinha interesse no reator? Porque seu reator para transmutação da matéria era de natureza nuclear”.

Móttola sustentou sua explicação exibindo um comunicado expedido pela Repartição de Patentes da Itália, aconselhando que “o conteúdo do mesmo pedido (o de patente) seja imediatamente enviado ao órgão competente do Tratado Euratom” uma vez que o reator era “especificamente de natureza nuclear”.

Jarbas Oiticica, em seu livro Revivescência, também confessa não saber explicar as razões que levaram o governo brasileiro a não desenvolver estudos sobre o Dispositivo Chambrin e testemunhou a sua viabilidade:

“Em 1982, quando de minha visita ao “Solar Energy Research Insitute” em Denver, Colorado, eu tive a oportunidade de inspecionar um reator de terceira geração, testado por aquele instituto nos motores de automóveis. Basicamente, o sistema obedecia a mesma fórmula do dispositivo Chambrin:

Conforme estudo publicado pelo referido instituto no folheto SERI/TP 235-159 UC Category-61A, titulado “Decomposing Methanol as a Consumable Hydride for Automobile Turbines”, apresentado na “World Hydrogen Energy Conference IV” em junho de 1982 de Pasadena, Califórnia.

Verifica-se assim que cai por terra os argumentos de que a liberação de hidrogênio como força motriz, gerada pela mistura da solução água-álcool, através de um dispositivo similar ao criado por Chambrin, poderia afetar as leis da termodinâmica”.

E conclui Oiticica: “Teriam forças ocultas ligadas aos grupos internacionais conspirado contra o dispositivo Chambrin…?”.

5 Comments on Alagoas e os combustíveis automotivos: Usga e o Dispositivo Chambrin

  1. São José da Laje, cidade de história importantíssima para o estado.

  2. Excelente matéria, isto é que é pesquisa. Parabéns, Ticianeli!

  3. Edmilson Rodrigues de Vasconcelos // 23 de maio de 2022 em 22:26 //

    Nunca tinha ouvido falar na USGA e sua importante história. Sabê-la foi enriquecedor. Quanto ao Chambrin, sempre quis saber o que tinha acontecido com ele e seu invento. Obrigado.

  4. Celia z antas // 24 de maio de 2022 em 10:04 //

    Adoro essas histórias de vivências reais mescladas de folclore Isso mostra como o brasileiro além de muito inteligente é pragmático pois resolve problemas práticos num vapt vupt kkkk

  5. Uma teoria da conspiração divulada à época e que persiste até hoje na forma de lenda urbana assegura que o francês foi “desaparecido” por ordem das sete irmãs petroleiras. Esse desaparecimento encerra duas interpretações: o físico ou a compra do seu invento por uma qantia inimaginável. A primeira delas predominava.

Deixe um comentário

Seu e-mail não será publicado.


*