O Castigo

Catedral de Maceió nos anos 50

Félix Lima Júnior
*Publicado no Diário de Pernambuco de 7 de outubro 1951.

Você acredita, mesmo, em milagres ou em castigos de Deus ou do céu? — perguntou-me espantado, com riso irônico, o Abelardo Mota.

Estávamos tomando laranjada num bar armado no meio da praça da Recebedoria, em Jaraguá, num domingo de procissão do Bom Jesus dos Navegantes.

O préstito religioso deixara a igreja há mais de uma hora e seguira, embarcado em saveiros, botes e rebocadores, devendo aquele momento estar em frente ao coreto da avenida Duque de Caxias, a julgar pelos foguetes que enchiam os céus.

Nosso grupo de amigos era pequeno. Três bancários, um funcionário federal e dois estudantes de Direito, da Faculdade do Recife. Destacava-se, entre nós, o Abelardo, que era ateu, descrente de tudo e de todos. Não acreditava em Deus, nos santos, no céu, e nem no diabo. Materialista puro.

A praça estava cheia. Gente vinda de todos os lados; da Ponta Verde, da Bomba, da Pajussara, do Mata Garrote, das Mangabeiras, da Estrada Nova, da Ponta Grossa, do Trapiche, do Pontal da Barra, de Bebedouro. Muito vestido novo a se mostrar, da seda mais fina e mais cara, á chita mais ordinária e mais barata, comprada, num domingo, a algum negociante ambulante na Feira de Passarinhos. Vendedores de rolete, de amendoim, de cocada, de cachorro-quente, de pipoca, todos gritando, fazendo a sua reclame, em geral num português de negro recém-chegado da Costa da Mina

Praça Dois Leões em Jaraguá na década de 1950

Tendo eu falado em ex-votos que vira, em grande número, na entrada da igreja do Bom Jesus dos Martírios, colocados por pessoas devotas, da mais rica esposa do industrial de tecidos ao mais humilde canoeiro, que escapara de morrer, quando a embarcação virara, no Afoga-Frade ou no Calunga, em dia de rijo nordeste, bem como em milagres atribuídos a vários santos, o meu amigo galhofou, riu muito, me ridicularizou. Depois passou a citar Blasco Ibañes, Emilio Zola, Giovani Papini, Guerra Junqueiro, e terminou por me considerar de mentalidade igual ou inferior à de uma camponesa bretã ou de um tabaréu nordestino, “afilhado do Nosso Padrinho Padre Cicero”…

— Má fé de uns; exploração de outros; ignorância da maioria — terminou por afirmar com ares superiores de quem tudo sabe.

Eu permanecia calado e ria-me. Não me convinha discutir com ele. Não sei por que não aprecio discussões sobre política ou sobre religião. É tempo perdido, que pode ser melhor aproveitado, discutir com um fanático, seja religioso ou político. Todos estão convencidos de que a razão está ao seu lado, e não cedem um ponto. Depois de discutir horas e horas os contendores estão no mesmo lugar: não avançaram um milímetro…

Não quis discutir, pois, com o meu amigo, companheiro de infância a quem muito estimava, embora fossemos de índole e temperamento completamente diferentes. Mas ele insistiu e depois de muito blasfemar, de dizer heresias sem conta, de atacar a igreja, ridicularizar o papa e os padres, terminou afirmando que só um idiota ou um fanático muito ignorante acreditava em milagres e castigos.

Houve quem falasse em Lourdes e suas curas milagrosas, mas ele deu uma gargalhada.

Alucinações de uma pobre camponesa! Caso idêntico aos de Jeanne d’Arc, da Santa do Coqueiro das estigmatizadas da Alemanha e de Minas, e outros tantos por aí… Lembre-se que, às vezes, a própria igreja católica não aprova essas histórias… A maior parte desses santos são débeis mentais, como Antônio Conselheiro, que gerou a tragédia imensa de Canudos, causando, além de muitas mortes. prejuízos sem conta…

E dirigindo-se a mim:

— Você acredita, então, que Antônio Conselheiro fosse um santo? Que fizesse milagres? Que ressuscitasse os sertanejos de suas hostes, abatidos pelas balas das Mauser e das Mannlicher dos soldados de Moreira Cesar e do general Arthur Oscar, como dizem, Cristo fazia quando, acompanhado dos seus discípulos, pregava sua doutrina a sombra dos vinhedos e das figueiras da Judéia, cruzando o Jordão, subindo as desoladas montanhas da Galiléia, ou atravessando o luminoso lago de Tiberíades, num barco à vela. acompanhado por algum lavrador da Samaria?

Como eu nada dissesse. ele continuou:

— No ano passado, eu próprio testemunhei um caso típico de desarranjado mental de um desses santos arranjados às carreiras e muitas vezes, a maioria mesmo, à revelia dos dirigentes da igreja de Roma. Foi no Recife, em meados de maio. Precisava comprar uns livros de Direito, mas o dinheiro estava curto e eu não queria escrever para casa, pedindo mais. Interessei-me em adquiri-los de segunda mão. Conversando com colegas soube que um velhote andara na Faculdade, dias antes, vendendo uns livros, de um filho, estudante, que falecera, três ou quatro anos passados. Deram-me o nome do homem e o endereço.

Procissão pelas ruas centrais de Maceió, com a Irmandade de S. Benedito à frente. Foto de Umberto de Souza Plácido

Era na rua do Forte, num mucambo, perto da maré. Fui até lá. Ele se mudara e estava residindo no Beco do Serigado. Encontrei-o, afinal, num ambiente de miséria indescritível, morando num casebre sórdido. com uma filha única. Era viúvo e descendia de antigos senhores de engenho de Palmares, gente rica que descaíra. Quando as usinas começaram a engolir os banguês ele, que não tinha jeito para agricultor e já estava devendo os cabelos da cabeça, vendeu a propriedade e veio residir no Recife, com a mulher um filho e a filha. Orientado por um grupo de indivíduos sem escrúpulo, meteu-se em negócios de que não entendia e perdeu o resto do dinheiro que apurara. Depois não conseguiu emprego, por mais modesto que fosse. A mulher faleceu logo, mais de desgosto e de vergonha, que não é brincadeira deixar a casa grande de um engenho para passar fome num mucambo, à beira do mangue… O filho ainda conseguiu matricular-se, com dificuldade, na Academia de Direito, e morreu quando cursava o 2° ano, levado pela tuberculose. O velho, já muito alquebrado, não podia mais trabalhar e, para viver, estava vendendo os livros do filho e alguns objetos de arte antiga, que salvara do naufrágio. Comprei três livros e paguei.

Julgando, talvez que eu fosse rico, filho de usineiro como ele era de um senhor de engenho, da antiga, autêntica nobreza pernambucana, levou-me ao interior da casa para me mostrar um rico relógio de mesa, em bronze e mármore de Carrara, lindo oratório de jacarandá talhado a canivete, uma imagem de Nossa Senhora em marfim. bem trabalhado, e dois ou três quadros de pintores notáveis. Era o que restava. As outras peças tinham voado… Vi. apenas, alguma. Não me faltava vontade: o que faltava era dinheiro…

Quando eu ia saindo o velho declarou ter simpatizado comigo […] e ir apresentar-me a filha. Com ares misteriosos e solenes, explicou que desde menina, ela era muito santa, pois não gostava de festas, de dança, de roupas bonitas, de joias, de livros. Vivia em casa, no seu quarto, e há mais de três anos não punha a cabeça à janela. Em voz baixa como se fosse contar-me um segredo, disse que a filha todos os dias falava com a “Divindade“, com Nossa Senhora, com o padre Cicero… À noite — explicou — acordo ouvindo pessoas conversando aqui em casa. Presto atenção. E ela falando com Deus e com os santos.

Apareceu a moça, a quem fui apresentado. Alta, magra, muito pálida, olhos duros fixos, mãos compridas, parecendo terem sido feitas de cera, cabelos lisos, evidentemente uma doente, tipo fim-de-raça. Estava com um vestido branco, comprido, mal feito e mal engomado, sem decote, mangas colorindo os braços. Uma desequilibrada, uma débil mental! Disse-me mais ou menos o que o pai já me narrara. Via Nosso Senhor todos os dias, conversava com Ele com o padre Cícero, com a Santa Virgem… Terminou por contar, entre outras coisas, que sabia o dia em que o mundo ia se acabar. “mas não dizia a ninguém, pois estava proibida por Deus”…

Pois bem: essa pobre moça, espírito fraco, débil mental, era a santa das redondezas: receitava, curava afrontação, maleita, carne quebrada, espinhela caída, osso torto, opilação, apendicite, nervo rendido, etc.! E resolvia todos os casos, desde um doente grave, com câncer no estomago, até situações difíceis de esposas abandonadas pelos maridos… E tudo de graça, sem cobrar um níquel, prova de que não era uma exploradora da boa-fé popular!

Está aí porque eu não acredito em milagres e castigos. Castigados vivemos nós, forçados a permanecer neste mundo cheio de tanta miséria de tanta coisa triste!

Quando ele terminou eu perguntei:

— Você então não acredita em castigos?

— Não.

— Conhece o Josias Aguiar?

— O Josias Aguiar? Conheço, sim, embora não tenha intimidade com ele. Não é aquele rapaz que foi acadêmico de Medicina na Bahia, e tem um braço cortado?

— É aquele mesmo. E você sabe como ele perdeu o braço?

— Não.

— Pois eu vou contar a você, que não acredita em castigos, como teve ele o braço amputado.

Bebi um gole da laranjada, que estava bem fria e narrei:

— Há uns quinze anos passados no domingo em que se realizava a procissão de Encontro, aqui em Maceió, estávamos em frente ao Cinema Floriano, esperando passagem de um dos préstitos. Nosso grupo era semelhante ao que está aqui reunido, com a coincidência de haver um ateu feroz, como você. Era o Josias Aguiar, 2° anista de Medicina, em Salvador, na Bahia, que viera passar a Semana Santa com a família, em Bebedouro, numa casa confortável nos fins da linha dos bondes, pois era gente possuidora de recursos apreciáveis.

Não se pode imaginar individuo mais rebelde a qualquer crença. principalmente em se tratando da Igreja Católica. Citava a propósito de tudo e sem propósito algumas Ruínas, de Volney, Voltaire, Zola, Victor Hugo, Papini, o Barão de Holbach, Blasco Ibañez, sendo que do último repetia trechos e trechos d'”Os Jesuítas“, escolhido das páginas mais expressivas principalmente aos membros da Companhia de Jesus. E não deixava pessoa alguma falar, fazer sequer uma defesa, mesmo pálida. da religião ou dos padres. Ficava afobado, vermelho com as veias entumecidas, e ia se inflamando cada vez mais, terminando quase que agredindo os presentes.

Rua do Comércio de Maceió na década de 1930

Estávamos perto do Relógio Oficial vendo as moças passarem. De repente, começaram a tocar os sinos da igreja do Livramento. Era a procissão, conduzindo a imagem de Nossa Senhora, saindo da Praça Deodoro para encontrar, em frente à Delegacia Fiscal, o outro préstito que conduzia a imagem de Cristo.

Quando o cortejo estava passando, o Aguiar, atacado de fúria repentina, ridicularizou as irmandades, insultou as Filhas de Maria, disse palavrões a respeito de um senhor que conduzia o estandarte do Apostolado da Oração da Levada, debochou dos anjos, enfim, não deixou pedra sobre pedra… Eu estava me sentindo mal com aquela agressão estúpida e gratuita, além de inoportuna, e não me retirei com receio de que ele, afobado como estava, fizesse mais disparates. Quando passou, porém, o andor com a imagem de Nossa Senhora, ao ombro dos irmãos da confraria do Rosário com suas opas amarelas — lembro-me bem que entre eles estava o velho Joaquim Vieira Maciel, o Santa Bárbara, o Wencesláu Moisés da Costa, o “Carvão de Pedra“, o velho Cirino José de Sant’Ana — o Aguiar não te conteve e, dizendo uma série de palavrões, fez um gesto imoral, com o braço direito, em direção à imagem.

Não pude suportar mais e resolvi sair. Deixei-o sem uma palavra, discretamente, para o escândalo não ser maior. Muita gente assistira o ultrage e ficara indignada. Fui para a Catedral e de lá para casa. Não me convinha estar assistindo. em plena Semana Santa, um amigo insultando a religião que professo.

Cheguei em casa chocado com o sacrilégio, jantei e fui ler o Diário de Pernambuco. Às 3 1/2 mais ou menos apareceu-me, de repente, um dos amigos que formavam o grupo em frente ao cinema e indagou:

— Você já soube o que aconteceu com o Aguiar?

— Não.

— Ele ia para casa, depois da procissão, num bonde de Bebedouro e o veículo foi alcançado pelo trem de Pernambuco, na Baixinha. Um desastre enorme. Sei que ele está ferido, no hospital. Vamos vê-lo?

Troquei de roupa e saímos rumo ao hospital, onde encontramos muita gente da família do ferido, que são pudemos visitar. O médico proibira a entrada de estranhos. A um irmão dele ouvi, então, o que ocorrera.

Depois de ter assistido a procissão, o rapaz foi para a praça dos Martírios, onde tomou o bonde para Bebedouro. O veículo ia muito cheio e ele seguiu pendurado no estribo, do lado esquerdo. Ao chegar em frente ao grupo escolar do Bom Parto ouviu-se, perfeitamente, o apito do trem que vinha do Recife. Imprudentemente, o motorneiro, julgando haver tempo para atravessar a linha férrea antes do comboio da Great Western, tentou passar, verificando-se o desastre. A locomotiva alcançou a parte de trás do bonde. jogando-o fora dos trilhos. Antes, porém, muitos passageiros que iam no estribo conseguiram saltar. Não morreu pessoa alguma. É que o bonde quase conseguira atravessar a linha e levou apenas forte pancada. A maioria dos passageiros passou um grande susto e duas senhoras desmaiaram. Só houve um ferido e foi o Aguiar, que caiu dentro de uma valeta, batendo com o cotovelo do braço direito numa enorme pedra, do que resultou fratura na articulação.

Cessada a confusão e aproveitando um automóvel que passava levaram-no ao hospital. Nem esperaram pela Assistência. Examinado pelos médicos, verificou-se ser necessário amputar o braço imediatamente, o que se fez. Exatamente duas horas depois do gesto inconveniente à Santa Mãe de Deus o braço direito do meu amigo caia dentro de um balde, no hospital de São Vicente de Paula.

— Tenham paciência! Foi uma coisa horrível o Aguiar ficar sem um braço e logo o braço direito. Um moço acadêmico, cheio de vida, com brilhante futuro! Poderia ter sido pior. Poderia ter morrido ou cortado as duas pernas.

Uma das irmãs dele sugeriu, então, chorosa, comovida:

— Vamos mandar celebrar uma missa em ação de graças?

— Missa? Para que missa? — interrompeu um senhor que estava sentado ao lado e a quem não fora apresentado, sabendo-se depois tratar-se de um dos tios do Aguiar, tão ateu quanto ele — o que se deve fazer é mandar dar uma surra no motorneiro para ele nunca mais expor a vida de tanta gente…

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