As Cavalhadas de Alagoas
Théo Brandão
Publicado na Revista Brasileira do Folclore, Ano II, nº 3, maio/agosto de 1962.
I
Figuram as Cavalhadas entre as tradições mais vivazes e prezadas das Alagoas.
Tradição velha de quatrocentos anos em terras do Nordeste, não desapareceu, todavia, de nossa hinterlândia, como parece ter acontecido nos outros Estados da região, apesar da concorrência que lhe faz atualmente outro torneio campeiro, recentemente aparecido, mas já vitorioso, que é a Corrida de Moirão.
Ainda hoje, em várias cidades do interior: Viçosa, Capela, Murici, União dos Palmares, São José da Laje, Colônia Leopoldina, Camaragibe, Maragogi, Atalaia, Pilar, Quebrangulo, Palmeira dos Índios, Santana do Ipanema, Pão de Açúcar, etc. — municípios tanto da zona litorânea e da mata, quanto do sertão e da ribeira do São Francisco, grupos de amantes do velho torneio equestre continuam a exibir-se nas festas dos padroeiros locais ou em outras oportunidades festivas, tais como as Festas de Natal, as Semanas Ruralistas e Agrícolas, as Exposições Pecuárias.
Nos últimos anos tem sido praxe, em Maceió, a realização de Cavalhadas durante as Exposições Pecuárias com tal sucesso que a iniciativa repercutiu na vizinha capital do Recife onde chegou a se exibir, com grande garbo, na abertura da Exposição de Pecuária Pernambucana, uma Cavalhada de Alagoas.
As próprias Corridas de Moirão não desprezam associar-se às Cavalhadas, e tenho notícias de que em torneios de pega de boi em Quebrangulo e Palmeira dos Índios correram-se também Cavalhadas.
Para as festas de Natal de Maceió, organizadas a partir de 1957 pela Prefeitura, tem vindo exibir-se a Cavalhada de Viçosa, dirigida pelo Sr. Apolinário Rebelo, como na IV Semana Nacional de Folclore e nas Festas de Natal da Usina Utinga Leão exibiu-se por várias vezes o grupo de Atalaia e Capela, dirigido pelo Coronel João Camelo, de Sapucaia — certamente os dois melhores conjuntos alagoanos atuais de corredores de Cavalhadas.
Afora tais festas tradicionais ou recentes, correm-se cavalhadas em várias outras oportunidades, tais como reuniões de fazendeiros e mesmo sem quaisquer motivos particulares, a não ser o próprio espírito esportivo dos cavaleiros e corredores.
Apesar dessa vivência em terras alagoanas, do entusiasmo extraordinário que ainda hoje desperta na assistência apaixonada e na população em geral, não são as nossas Cavalhadas o torneio vistoso e variado que conhecem e, às vezes, ainda praticam as populações do Sul do país — as Cavalhadas Dramáticas, as Cavalhadas de Mouros e Cristãos.
Como se verá adiante, nossas Cavalhadas constam somente da Corrida da Argolinha e de pequenas Escaramuças, apenas parte das Cavalhadas sulinas que, de acordo, tanto com as descrições antigas de Martius na Bahia, Vieira Fazenda em Niterói, Emanuel Pohl em Goiás, José Bento Faria Ferraz em Curitiba, quanto com as mais recentes de Loureiro Fernandes no Paraná, Ênio de Freitas e Castro no Rio Grande do Sul, Renato Almeida em Goiás e Alceu Maynard Araújo em S. Paulo (S. Luís de Paraitinga), incluem, ao lado das dramatizações da luta de Mouros e Cristãos (com embaixadas, correiras, duelos de espadas, lança e pistola), outros jogos equestres além do das argolinhas: o alcancilho, derrubada e levantamento de máscaras e cabeças, com espadas e pistolas.
Não há, pois, como nem onde buscar para as nossas Cavalhadas a influência das Mouriscas ou Mourismas peninsulares que, entre nós, existem, mas sob a forma naval da Chegança.
A não ser que se queira discutir e dilucidar se nossas Cavalhadas são uma desintegração das Cavalhadas sulinas ou se, ao contrário, a forma do Sul é que é um sincretismo entre os jogos puramente equestres e as Mouriscadas.
Falece-nos autoridade e falta-nos documentação suficiente para dirimir a questão; e se a abordamos é tão somente para trazer as achegas por nós colhidas, que outros, com mais facilidades bibliográficas e maior competência, poderão, de futuro, confirmar ou, ao contrário, invalidar.
É natural que os folcloristas do Sul tendam para o primeiro ponto de vista. E justifica-se que os do Norte participem do segundo. Um mestre da autoridade de Luís da Câmara Cascudo, em 1952, em Maceió, ao assistir, durante a IV Semana Nacional de Folclore, a Cavalhada que se exibiu no arrabalde de Bebedouro, inquirido por alguns companheiros que a assistiam também, manifestou a opinião de que a forma primitiva de Cavalhada seria a Corrida de Argolinhas e os jogos equestres correlatos, enquanto as Cavalhadas do Sul seriam formas sincréticas.
É que, no Norte do Brasil, a Corrida de Argolinhas é a forma comum, pura ou associada antigamente à corrida de canas e às escaramuças.
De argolinha foram as Cavalhadas registradas no Brasil no século XVI: a que em Pernambuco, em 1584, assistiu o Padre Fernão Cardim e de que nos deu notícias no Tratado da Terra e da Gente do Brasil (p. 295): “jogaram canas, pato e argolinha”; e a outra, vinte anos anterior, presenciada em 1564 na Bahia, no Jubileu do Espírito Santo, quando “alguns senhores para regozijarem mais a festa depois de comer, correram a argolinha na aldeia”, segundo informe de A. Peixoto em Cartas Avulsas.
Ainda de argolinhas foi a que se realizou no século XVII no Recife, durante o Domínio Holandês, sob o governo de João Maurício de Nassau, para comemorar a coroação do Duque de Bragança como Rei de Portugal. Cavalhada que está descrita por Frei Manuel Calado em O Valeroso Lucideno e Triunfo da Liberdade e na qual se correram, entre os portugueses capitaneados por Pedro Marinho Falcão e holandeses, franceses, alemães e ingleses chefiados pelo próprio Conde de Nassau, argolinhas, patos, canas e laranjadas.
É bem verdade que no meio desses jogos houve uma luta simulada de espadas; mas não há menção, no cronista, que tenha sido de Mouros e Cristãos.
Mesmo mais para o Sul — Rio de Janeiro, Bahia ou Minas a forma que se regista, tanto no século XVII, quanto no XVIII, é a dos jogos e torneios equestres, não se encontrando notícia da parte dramática de Mouros e Cristãos.
Assim é que foram as Cavalhadas que se realizaram no Rio de Janeiro, quando da aclamação do mesmo D. João IV, sendo governador Salvador Correia de Sá e Benevides. A primeira, a 4 de março de 1641, em que “houve festas apenas interrompidas pela Semana Santa que logo sobreveio, nas quais, à moda do tempo, se fizeram encamisados e alardos e se correram touros, jogos de canas, salvas de artilharia, etc” (História da Companhia de Jesus, tomo VI, p. 44); a segunda, em abril do mesmo ano: “ao sábado se correram manilhas, sendo os opositores vinte cavaleiros, não faltando o governador, nem o Capitão Duarte Correia, que também em todas as festas luziu bizarro, e bizarreou lustroso.” (Relação da Aclamação, apud Dicionário do Folclore Brasileiro, de Luís da Câmara Cascudo, pág. 61).
Em 1760, na Bahia, por ocasião do casamento da Princesa da Beira com o infante D. Pedro, houve festividades várias de que nos dá notícias o Padre Manuel de Cerqueira Torres em sua Relação Panegirico-Histórica das Festividades com que a Cidade da Bahia Solenizou os Felizes Despozórios etc. E, entre estas, ao lado de várias contradanças e farsas a caráter, no meio das quais uma Mourisca, houve cavalarias no Terreiro do Paço nas quais se correram argolinhas no primeiro dia, “argolinhas e quartinhas, dentro das quais estavam flores e passarinhos que perturbados pelas lanças dos cavaleiros serviam de admirável recreio aos olhos”, e, “no último dia, cortaram carneiros e em cada uma das tardes fechavam o ato com distintas e vistosas escaramuças.” (Anais da Biblioteca Nacional, vol. XXXI, 1913). Não há, pois, então, ainda qualquer menção à parte de Mouros e Cristãos nas Cavalhadas.
Ainda em começos do século XIX realizaram-se Cavalhadas de Argolinhas, pombos, etc, no Rio de Janeiro. Débret em sua Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil nos dá notícias das mesmas em duas oportunidades. A primeira, por ocasião do casamento da Princesa Real D. Maria Teresa, em fins de 1810. A segunda, em 7 de fevereiro de 1818, nas festas de aclamação de D. João VI. Da primeira, é rápida e sem pormenores a referência: “Ergueu-se um circo para Touradas e Cavalhadas”. Mas na segunda noticia-se pormenorizadamente:
“O primeiro exercício consistia em tocar com a lança, a galope, numa pequena barquinha cheia d’água, suspensa a doze pés de altura, a uma corda esticada e amarrada pelas duas pontas a dois postes entre os quais passava o cavaleiro. Um golpe bem dado devia escravizar a barquinha. O segundo exercício consistia em quebrar com a lança um pote de barro pequeno, suspenso do mesmo modo e dentro do qual havia um pássaro que, libertado, erguia voo fazendo flutuarem as fitas amarradas nas suas patas. O terceiro exercício consistia em enfiar a lança numa argola, também pendurado à mesma altura dos objetos precedentes. No quarto exercício, o cavaleiro servia-se da ponta da lança para espetar uma cabeça de papelão, colocada numa pequena bandeja, à altura de um homem. No quinto, com um tiro de pistola, carregada somente com pólvora, fazia ele saltar cabeça igual, na mesma posição da outra. O sexto consistia em erguer do chão uma cabeça de papelão na ponta de uma espada. Esse gênero de exercício precedia outro que consistia no encontro de dois cavaleiros correndo a galope. Em primeiro lugar era preciso cortar com um golpe de espada uma cana de açúcar, jogada pelo adversário mais ou menos à altura do rival. Essa luta de habilidade era repetida alternadamente em número igual de vezes por ambos os adversários, a fim de estabelecer-se um termo de comparação. Em segundo lugar, devia-se correr com um pequeno escudo no braço e aparar com destreza laranjas de cera cheias d’água, jogadas pelo adversário no momento do encontro; esse exercício se repetia como o primeiro. Para mostrar ao expectador afastado a eficiência do golpe da laranja, em vez de enchê-la d’água, faziam-no às vezes com polvilho, plumas coloridas ou apenas papel branco picado. Os diferentes modos de manejar a lança e a pistola foram empregados com habilidade a fim de se variarem as seis representações sucessivas”.
Há ainda, em Débret, descrições dos trajes dos cavaleiros mas, em nenhum caso, referências a dramatizações e lutas de Mouros e Cristãos.
Ainda no Rio de Janeiro, pouco depois, em 1818, o Padre Perereca (Luís Gonçalves dos Santos) em suas Memórias Para Servir à História do Reino do Brasil (Reedição de Zélio Valverde, Rio) nos dá conta de duas Cavalhadas que se apresentaram como parte dos festejos pelo consórcio do Príncipe D. Pedro com a Princesa Dona Leopoldina, no Campo de Santana, a 12 e 21 de outubro de 1818.
Da primeira a notícia é a seguinte:
“Tendo-se concluído no vasto campo de Santana a magnífica praça que o Senado da Câmara desta cidade do Rio de Janeiro fez erigir para nela solenizar com festas públicas de Cavalhadas e Corridas de Touros os felicíssimos desposórios de Sua Alteza, etc.”. “Findas as cortesias começaram as escaramuças, seguiram-se os torneios, e, outros diversos jogos muito brilhantes, que plenamente satisfizeram a pública expectação”. (p. 688)
Da segunda, nos diz o cronista:
“Por último, apresentaram-se os cavaleiros, sendo precedidos de sua brilhante comitiva, como nas tardes antecedentes, e nesta última como por despedida, executaram-se novos e mui vistosos torneios, e justas com geral gosto e satisfação; e terminadas as corridas começaram uma bela escaramuça com os lenços na direita, encostados sobre o ombro em sinal de despedir-se, etc.” (p. 697).
Ainda aí, nenhuma referência à Cavalhada Dramática.
É bem verdade que desse início de século já começam a aparecer documentos desse tipo de Cavalhadas. Von Martius registrou-as no ano de 1819 em Ilhéus, Bahia:
“Rapazes vestidos como mouros e cavaleiros cristãos, passearam a cavalo pelas ruas. Combate violento travou-se entre as duas hostes”. (Antologia do Folclore Brasileiro, Luís da Câmara Cascudo, p. 86).
E no ano anterior, no Tejuco — Minas Gerais, por ocasião da coroação de D. João VI:
“Não menos interessante espetáculo foram as Cavalgadas. Cavaleiros trajando veludo vermelho e azul, bordado a ouro, armados de lanças, figuraram combates entre Mouros e Cristãos, e, nesses desafios faziam lembrar a bela época cavalheiresca da Europa. Antes de começar este combate simulado, cruzaram-se Cristãos e Mouros, depois, separaram-se em duas filas e correrão uns para os outros, atacando-se, ora com lanças, ora com espadas e pistolas. No seguinte carrossel da argolinha, conseguiram com grande agilidade, uns após outros, enfiar o anel em rápida correria, desde o camarote do Intendente até ao fim da pista fronteira, onde ele estava pendurado. Se o herói era bem sucedido, retirando a argolinha com a lança, ele escolhia na assistência uma dama, mandava-lhe um pajem negro pedir-lhe licença para lhe oferecer o troféu, entregava-lo, e, triunfante, ao som da fanfarra, corria ao encontro dos cavaleiros, trazendo na lança uma echarpe ou laço de chita ali amarrado pela mão da escolhida. Noutras manobras, os combates de esgrima e tiro ao alvo eram para obter cestos com artísticas flôres, frutos ou animais do país ou luta contra mascarados. Uma linda diversão. que fazia lembrar a galantaria do tempo da Cavalaria, consistia em levarem os cavaleiros limões de cera, cheios de flores, que beijavam como presente de sua dama, e depois os atiravam uns nos outros, enchendo de flores o campo de batalha. Esses divertidos espetáculos encerraram-se com corridas em filas, formando meandros, volteios e círculos, nos quais os atores se mostraram exímios cavaleiros e todos se dispersaram, depois das lutas, trocando entre si manifestações de amizade, como bons cristãos”. (Câmara Cascudo, Antologia do Folclore Brasileiro, p. 83).
Esta minuciosa descrição é, portanto, de uma Cavalhada Dramática semelhante às registradas por Ênio Freitas e Castro no Rio Grande do Sul, Loureiro Fernandes em Palma (Paraná) e Renato Almeida em Goiânia.
E como ela, a partir do século XIX, se registraram outras no Brasil.
Em 1820, Emanuel Pohl (Viagem ao Interior do Brasil, edição do Instituto Nacional do Livro, 1951) foi encontrar uma Cavalhada de Mouros e Cristãos no Arraial de Santa Cruz, Goiás, que assim nos descreve:
“Na parte de cima da praça estavam os cavaleiros vestidos com o uniforme português de formatura, e saúdam-nos com as espadas. Então começou o jogo propriamente dito que representava um combate entre mouros e portugueses. O espetáculo foi aberto por uma embaixada que oferecia a paz aos Mouros, etc. A oferta foi recusada e principiou o combate. Os mouros foram vencidos e convertidos. O combate foi executado com admirável habilidade. As evoluções, os lançamentos de venábulos, a esgrima das espadas despertaram sincera admiração. A conclusão foi um torneio executado com admirável habilidade”.
Em São Gonçalo, perto de Niterói, nos meados do século XIX também existiram as Cavalhadas Dramáticas de Mouros e Cristãos, descritas por Vieira Fazenda (Antigualhas e Memórias do Rio de Janeiro, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 93, vol. 147, Rio, 1927):
“Eram muito apreciadas as proverbiais Cavalhadas de S. Gonçalo, da outra banda da baía. Arremedo dos antigos torneios e justas da Idade Média, apresentavam-se em campo prestes ao combate duas hostes de Cristãos e Mouros. Vestidos a caráter e empunhando compridas lanças, saudavam os assistentes. O Mouro era sempre o provocador. Um deles adiantava-se e, para dar coragem aos companheiros, dizia mais ou menos o seguinte: “Ilustres companheiros invencíveis, contra os Cristãos a guerra para nós se faz preciso”. Desde já jurareis pelo Alcorão morrer ou vencer pelo Profeta e por nossa santa crença”. Os guerreiros contrários aceitavam o repto, dizendo em linguagem gongórica que a Cruz de Cristo venceria, como sempre, o réprobo Maomé. Seguiam-se o combate, as escaramuças, jogos de destreza e agilidade, em que se mostravam exímios os cavaleiros. A vitória era sempre dos Cristãos e os Mouros, que, vencidos, confessavam-se prisioneiros. Girândolas, repiques de sinos, assinalavam a terminação da luta. Vinha após o jogo da Argolinha, muito conhecido e bem descrito pelos competentes”. (p. 135).
Em Curitiba, em 1812, José Bento Faria Ferraz (apud Loureiro Fernandes, As Cavalhadas de Palma, III Semana Nacional de Folclore, IBECC, p. 64) igualmente as descreveu:
“Nessa tarde (6 de janeiro) houveram cavalhadas sérias com a maior decência não esperada, adornados os cavaleiros ricamente, a Fila dos Mouros com fardamentos de cetim cor de fogo e a dos Cristãos de cetim cor de pérolas, e os mais aparelhos arriados proporcionalmente à função a que se dedicavam. Achavam-se os Mouros no alto do seu grande Castelo quando foram acometidos pela fila dos Cristãos que avançarão de a cavalo, e começaram uma batalha que ainda nas ideias bem cordatas representava uma viva guerra, até que subindo dois cristãos pelos cantos mais elevados do Castelo, ao momento em que ele ardia em chamas vorazes se apossaram dos Estandartes, e se recolheram em seu adornado castelo que ficava sobranceiro até que abandonando os mouros o seu incendiado sítio se apresentaram no Campo as duas filas a cavalo, e precedendo raivosas embaixadas, deram princípio a novo ataque até o ponto de concluírem com a paz os seus esforços, prosseguindo o remanescente das Cavalhadas enquanto durou a luz do dia”.
Quanto à Cavalhada que St. Hilaire assistira em Minas, diz Renato Almeida (História da Música Brasileira, p. 221) que “foi uma cavalhada, em que cavaleiros, representando Cristãos e Mouros se entregavam a um torneio, simulando combater a lança, pistola e sabre”. Infelizmente não cita o prezado Mestre nem o local, nem a data em que a assistiu o sábio francês. Contudo, a que presenciou em Goiás (Arraial de Santa Luzia de Goiás), em 1º de junho de 1819, nada tinha de Cavalhada Dramática:
“Todos os fazendeiros das redondezas estavam reunidos na vila e no momento em que eu chegava na praça pública, exercícios de cavalos (cavalhada) iam realizar-se… Tinha-se traçado sobre a praça, com terra branca, um grande quadrado em torno do qual os expectadores estavam em pé ou assentados em bancos. Os cavaleiros levavam o uniforme da guarda nacional (milícia): tinham um capacete de papelão sobre a cabeça e montavam cavalos ornados de fitas; limitaram-se a percorrer a praça em diversos sentidos e, no mesmo tempo, homens, igualmente a cavalo, mascarados e disfarçados de mil maneiras, faziam farsas quase semelhantes à de nossos palhaços”. (Voyage aux Sources du Rio de S. Francisco et dans la Province de Goyaz, Paris, 1848, p. 8).
Tais documentos, porém, não são de modo algum probantes: 1º) porque são todos do século XIX, quando sabemos que Cavalhadas Esportivas já existiam no Brasil desde o século XVI; 2º) porque exceto nas assistidas por Martius no Tejuco e Vieira Fazenda em São Gonçalo, nas quais, ao lado das lutas de Mouros e Cristãos, havia clara referência à corrida de Argolinhas, as demais apenas falam pelo alto em torneio, parte complementar das mesmas, mas sem especificar de que constavam.
Naturalmente, a prova provada de que a Cavalhada Dramática é a forma primitiva e não a sincretizada e que essa reunião dos jogos equestres (parte dramática e parte esportiva), se houve, não se deu no Brasil, teríamos no encontro de tal forma complexa na Península.
É bem verdade que um autor de tanto peso quanto Mário de Andrade fizera a afirmativa (O Empalhador de Passarinhos, p. 164): “Desde muito cedo, tanto na Península Ibérica, como no Brasil, as Cavalhadas aceitaram uma parte dramatizada, referente às lutas de cristãos e mouros”.
Quanto ao Brasil já vimos que não foi tanto assim, a não ser que o mestre paulistano possuísse documentação que nos deixou de apresentar.
No que respeita à Península Ibérica, quase o mesmo. Isso porque os documentos que aduzo não são convincentes. Senão, vejamos. Diz que Dudwig Pfandl, no seu Spanische Kultur und Sitte, ao detalhar os números de que se compunham os torneios equestres espanhóis dos séculos XV e XVI dá como sistematicamente existentes o jogo de canas, o das argolinhas, e as “festas de mouros e cristãos”. Existentes, está dito. Mas conjuntos? O texto não parece indicar, até mesmo pelo aspeado feito por nosso autor em “festa de mouros e cristãos”. Mais adiante, acrescenta Mário de Andrade (Danças Dramáticas Ibero-Brasileiras, in Música no Brasil, Ed. Guaira, p. 56) a descrição de uma destas (festas de Mouros e Cristãos) feita pelo viajante Henrique Cock em Tortosa, no ano de 1585, — mourisca pedestre munida de artilharia, sem nada de elemento equestre e muito menos corrida de argolinha e canas. Depois, afirma que em Portugal Teófilo Braga recolheu documentação do século XVIII suficiente para provar que Cavalhada com Mouros e Cristãos bem como mouriscas populares, coreográficas a dramatizadas se interpenetraram muito. Além de não assinalar a obra nem citar os documentos de Teófilo Braga, há nítida confusão, pois uma Cavalhada de Mouros e Cristãos já é uma mouriscada e não sabemos como elas possam se interpenetrar mais. Ou então, a Cavalhada a que se referiu não era de Mouros e Cristãos mas esportiva apenas — de argolinha, canas etc. e aí haveria penetração e sincretismo que é justamente o que continuamos pretendendo descobrir na Europa.
A verdade é que não conseguimos encontrar, na bibliografia a nosso alcance, uma só Cavalhada Dramática verdadeira em terras de Portugal. Em cerca de vinte mouriscadas de que tivemos notícia certa em Portugal, nenhuma se fazia acompanhar de jogo de canas e argolinhas e até mesmo, parece-nos, foram marítimas ou pedestres. As únicas sobre que poderiam restar dúvidas seriam o combate narrado por Garcia de Rezende entre D. João II em Alvisquer, ribeira de Santarém, e seu cunhado D. Manoel, vestido, assim como o séquito, de mouros e onde “houve uma galante escaramuça que pareceu muito bem” (Câmara Cascudo, Dicionário do Folclore Brasileiro, p. 212). Todavia em sua obra Literatura Oral o mestre melhor esclarece a citação de Garcia de Rezende dizendo que no São João de 1490 o Rei D. João II e o duque Manuel, seu cunhado, no campo de Alvisquer fingiram uma cilada entre Cristãos e Mouros. (p. 440). Não seria nem uma mouriscada (pois não há referência a embaixadas, prisão de mouros etc.), quanto mais uma Cavalhada Dramática com argolinhas e canas.
Outra possibilidade seria a Mourisca de Sobrado (Valongo) estudada por Rodney Gallop e Luís Chaves. Em trecho do último autor, que infelizmente no momento não nos foi dado reencontrar, se dá a mesma mourisca como “um ataque simulado de cavaleiros cristãos a um castelo mouro” o que a faria classificar como uma mouriscada equestre (Mesmo assim não poderia passar como Cavalhada Dramática). Não obstante, uma citação feita por Câmara Cascudo (Literatura Oral, p. 442) nos esclarece que, ao contrário, ela era marítima: “mouriscada de Sobrado, luta entre mouros e ‘bugios’ que vencem. O tema é marítimo”.
Ao contrário, toda a documentação que possuímos sobre as Cavalhadas de Portugal nos diz que foram somente esportivas.
As Cavalhadas atuais, descritas por Jaime Lopes Dias e Afonso de Lucena são corridas de Argolinhas. Deste modo as descreveu Jaime Lopes Dias em S. João de Rosmaninal (Etnografia da Beira, VII, p. 143):
“Depois do jantar há nova cavalhada (desfile de cavaleiros, esclarecemos) realizando-se em seguida a função do tirar do galo. Na Quelha do Espírito Santo é colocada uma corda que abrange, lado a lado, o arruamento, e de onde pende uma argola de junco, onde os cavaleiros, deverão, correndo a galope, enfiar uma vara. Estes formam à entrada da Quelha e correm, um por cada vez, primeiro o alferes que entrega a bandeira a um dos padrinhos. Todos os que conseguem enfiar a vara, recebem um galo e em seguida toca a música. O torneio prolonga-se, geralmente, até serem distribuídos dez ou doze galos”.
Armando de Lucena nos dá uma descrição das Cavalhadas na segunda-feira mais próxima do dia 15 de agosto, em Malveira, no caminho de Torres, perto de Lisboa. Destacamos do seu artigo que está em Arte Popular (29 vol., p. 67/72) Os trechos mais significativos, sobretudo quanto às identidades com as nossas festas e Cavalhadas:
“Chegam as doceiras com os seus tabuleiros… Demarca-se o campo com postes e prumos enfeitados de verdura de buxo ou murta… Vão chegando os cavaleiros anunciados por foguetes estrondosos. A filarmônica da Ribaldeira que geralmente acompanha e até está pronta para sublinhar com meia dúzia de compassos os lances mais ousados dos competidores… Uma girândola de foguetes rebenta no espaço com grande e prolongado fragor. Os cavaleiros alinham no extremo do terreno, pouco mais ou menos como outrora as quadrigas se postavam ao fundo da pista romana. No extremo oposto está a meta; pendente, e oscilando no ar, mostra-se o prêmio, acompanhado dum grande laço ou argola, por onde a lança do cavaleiro deve enfiar no jato da carreira, que tem que ser veloz e decidida. Se a pontaria não for perfeita, o contendor passa, nada arrastando consigo, e espera que outros tentem a proeza. Um, por cada vez, vai tentando a sorte, ou a destreza, até que a lança atinja o alvo e a conquista, portanto, se realize, feito que a música assinala com duas assopradelas bem puxadas nos metais da filarmônica”.
Aliás, Armando de Lucena acrescenta que o ritual da festa corresponde, mais ou menos, à descrição d’alguns textos antigos (que não diz de quem e de quando):
“É posta a argolinha de prata na corda presa a dois vergueiros verdes, correram os cavaleiros todos por ordem dos juízes. E corrida a carreira, logo o cavaleiro com muita certeza, beijando o remessão [lança], o tornava a seu lugar, donde se ia entregando a outro, e desta maneira foram correndo todos cada um três carreiras, as quais, acabadas, rodearam todos o teatro, fazendo diante dos juízes uma meia lua. E em cima do teatro estavam assentadas todas as donzelas das danças.
De Luís Chaves são notícias de que se celebravam, no século XV, em Braga, na véspera de Corpus Cristi, Cavalhadas, corridas de touros e outros jogos, segundo Albano Bellini (Portugal Além, p. 118) e que segundo Frei Agostinho no seu Santuário Mariano, em tempos de D. Sancho I, segundo uns, e de D. João I, segundo outros, houve uma invasão de casteIhanos que os portugueses bateram invocando N. S. dos Açores, de Celorico, e que para comemorar um voto desse sucesso, a Vila de Trancoso ia com o seu Termo ao santuário dos Açores, na primeira oitava do Espírito Santo: “saindo ao campo da vila toda a gente a pé, que de ordinário são três ou quatro mil pessoas, correm um pouco e param. Depois se seguem os cavaleiros fazendo escaramuças, no fim dão suas carreiras e apeiam-se”. (Folklore Religioso, pp. 139 e 140).
Na Madeira, Teófilo Braga fala somente em jogos de canas na festa de São Sebastião (O Povo Português, p. 390).
Mas a documentação mais valiosa temo-la num dos trabalhos do Prof. José Manuel Landeiro, publicado no Mensário das Casas do Povo (outubro de 1954), a respeito das Corporações de Ofícios Através dos Tempos, em que estuda as Cavalhadas de S. João em Chaves. Segundo o nosso autor, no reinado de D. Afonso V (1432/1481), o primeiro duque de Bragança, D. Afonso, que durante muitos anos residiu na vila de Chaves, fundou ali uma confraria, os Cavaleiros de S. João, da qual só podiam fazer parte os homens de reconhecida nobreza e com capacidade de montar a cavalo. Esta confraria, segundo rezava o Compromisso, fora criada ou instituída
“para o alegre festejo de alcancias e mais festas de cavalo, não só no dia de S. João, mas também nas principais festas do ano celebradas em Chaves, e bem assim para estarem bem exercitados e prontos para o serviço da pátria os mais nobres cavaleiros da vila. Os estatutos desta confraria feitos pelo próprio Duque, nos meados do século XV, foram renovados em 1625, sendo submetidos à aprovação do papa Urbano VII, que os aprovou com muitas indulgências aos cavaleiros que nela eram admitidos. Após a missa sucediam as festas de cavalo, começadas no citado campo (de S. Francisco) e repetidas noutros lugares, dentro e fora da vila. Os cavaleiros faziam escaramuças, correrias, jogavam canas e sortelhas, executando muitos outros exercícios com os cavalos, em que, à porfia, cada um procurava ser o primeiro a sobressair aos outros em valor, em perícia e em agilidade. Não faltavam os fartos aplausos do povo, que em massa admirava estes torneios espetaculosos. Durou largos anos esta nobre cavalaria de S. João, em Chaves. Não se sabe quando se extinguiu mas sabe-se que no fim do século XVIII, quando no campo da Roda já não havia a capela de S. João, ainda iam, no dia do santo, os cavaleiros ao convento de S. Francisco, em luzida cavalgada, com o seu capitão e sua bandeira ouvir missa que o capelão da confraria ali celebrava, realizando-se em seguida os exercícios equestres determinados pela remota tradição”.
Desta forma nos dando notícias de Cavalhadas Esportivas, desde o século XV, em Portugal, não nos dizem nada absolutamente os citados autores portugueses, nada sobre as Cavalhadas Dramáticas.
Na Espanha, em cerca de trinta mouriscas anotadas, algumas com texto e descrição integrais, como as registradas por Arco y Caray no seu Folklore Alto-Aragonés e outras estampadas na Revista de Dialectología y Tradiciones Populares, de Madrid (Anos III a XIV), apenas encontramos uma mourisca a cavalo: a de Maqueda e que assim nos descreve Martin Brugarola (Revista de Dialectologia y Tradiciones Populares, tomo XI, p. 532):
“Chega o dia da festa e tudo está preparado, o que não custa muito, pois muita gente do povoado já sabe de memória muitos recitados da representação. Todos os atores vão a cavalo (o grifo é nosso), por isso os que carecem pedem emprestado aos vizinhos para esta festa. Os mouros levam calças de cor encarnada, uma espécie de túnica curta, um turbante e tafetan, todo também de cor encarnada; na testa levam uma meia-lua. O rei cristão leva uma guerreira militar de azul forte, com ombreiras douradas, etc. Cada um veste-se em casa e antes de dar umas quantas carreiras a cavalo pela rua se dirigem os cristãos à Igreja etc. Começa depois a luta, cruzam-se as lanças e as espadas. Saem vencedores os mouros que se apoderam da Virgem e fazem prisioneiros ao general Aceta. Há depois fuga do rei cristão e conversão do rei Mouro. Acabada a representação segue-se a procissão que percorre as ruas, sendo a Virgem escoltada por cristãos e mouros em duas filas”.
Nada há portanto nessa mouriscada equestre dos jogos esportivos das Cavalhadas puras.
A respeito destas em terras de Espanha, conhecemos apenas uma menção na obra de Hoyos Sáinz e Nieves de Hoyos Sancho, Manual de Folklore (p. 401):
“Interessante são em Espanha os jogos de animais sempre admirados pelas classes populares, e especialmente campesinas, ao presenciar a luta entre touros e galos, e ainda mais ao admirar a agilidade e destreza dos cavaleiros que em Andaluzia e Extremadura são insuperados, já como simples ginetes ou en las carreras de cintas, anillas, sortijas em que a pleno galope obtêm o prêmio de sua agilidade e destreza, ou nas grandes caballadas que fazem parte de muitas festas, geralmente de caráter histórico e ainda nas próprias cavalgatas, que em Andaluzia e Levante são dignas de admirar por sua faustosidade e maestria”.
Seriam as grandes caballadas, Cavalhadas de Mouros e Cristãos? Nada nos dizem a respeito os dois grandes folcloristas espanhóis.
Todavia é mister referir a opinião de Jesus Taboada (Revista de Dialectología y Tradiciones Populares, XI, p. 352), segundo a qual nas festas de canas, de tradição moirisca, era uso que a metade dos cavaleiros vestisse de cristãos e a outra de trajes chamados malotas, que eram usança moirisca. E segundo Deleito Piñuela são “reminiscências suas (das festas de canas) os simulacros de lutas de moiros e cristãos”. Restaria, contudo, saber em que consistiam tais festas de canas. Serão os jogos de canas como se fazia no Brasil em certas Cavalhadas? De certeza, não nos diz o autor; desconfiamos, porém, que não o seja pois que se fala em festa e não em corrida.
Também na Latino-América possuo o registro de mais de 30 mouriscas, das quais, porém, nenhuma é equestre. Ao contrário, temos a descrição de várias Cavalhadas Esportivas, quer sob o nome de carreras de caballo (no México), quer sob a denominação de corridas de sortijas (na Argentina). Destas Cavalhadas nos diz Felix Coluccio em seu Dicionário Folklórico Argentino (p. 94):
“Corrida de sortija — Jogo tradicional de nosso campo que ainda se pratica e que consiste em colocar no sítio da prova um arco donde pende um anel que os cavaleiros devem tirar com uma lança que levam na mão. Os competidores, montando bons cavalos, dividem-se em dois grupos colocados à certa distância de um e outro lado do arco e ali esperam o sinal para dar início à corrida. Iniciam esta, passando alternativamente de um a um por baixo do arco, fazendo picar, então, seu cavalo e tirar o anel”.
Da Argentina é ainda uma descrição de Ismael Moya (apud Felix Coluccio, Antologia Ibérica, p. 25) sob a denominação de corrida de sortija e da mesma obra é uma fotografia de tais corridas no sul de Buenos Aires, em que aparece um cavaleiro colocando uma argolinha na garra, como em nossas Cavalhadas de Argolinha.
No México, nas festas de São João em Chavinda há Carreras de Caballo. Nestas, um cavaleiro sai com um pombo na mão que outro correndo procura arrebatar e matar. Alfonso del Rio, que no-las descreve (Anuário de la Sociedad Folklorica de Mexico, 1°, p. 135), diz-nos que as carreiras de cavalos começaram na Espanha com o jogo de sortijas. Entre dois postes se estendia uma corda, no centro da qual se fazia pendurar um fio, atando-se de uma de suas pontas o anel. Os cavaleiros que assistiam a este torneio, passavam a galope a seus cavalos tratando de tirar o anel com a lança. Mais tarde se substituiu o anel por um galo amarrado nas patas, que se subia ou baixava por meio de uma corda, a fim de que o cavaleiro a cortasse com sua espada.
O que parece da revista que fizemos de todos estes documentos é que realmente a forma primitiva de Cavalhadas foi a corrida de argolinhas e que não somente suas variantes (galos, patos, canas, cabeças) foram secundárias, como a parte dramática, se não no Brasil, pelo menos na Espanha, reuniu-se à parte esportiva. Caso não tenha sido justamente o contrário: às mouriscas equestres se incorporaram os jogos delas independentes de canas, alcancias e argolinhas.
Pelo menos as corridas de argolinhas e de cabeça ou manequim já se encontravam citadas entre os torneios medievais. Cesar Cantu, no 9º volume de sua História Universal (p. 111), assim nos fala de tais torneios:
“Os cavaleiros preparavam-se para a guerra, durante a paz, fazendo exercícios militares dos quais eram os torneios os mais solenes. Os combates variavam de gêneros e de nome. O carrossel era uma festa militar, com carros e decorações, em que se representavam as façanhas dos antigos heróis e paladinos; também às vezes se corria o anel, exercício sem perigo em que os cavaleiros, correndo à desfilada, diligenciavam enfiar com as lanças um anel suspenso. No jogo chamado Quintana apontavam os golpes a um manequim móvel, disposto de tal arte que se alguém lhe acertava em qualquer parte do corpo que não fosse a fronte voltava-se e batia com um pau no desastrado”.
Aliás, é uma tradição oral que as Cavalhadas eram primitivamente de argolinha. O próprio Ênio de Freitas e Castro fez anotações, através dos Contos Tradicionais do Brasil, de Luís da Câmara Cascudo, segundo as quais a tradição oral só conhece as Cavalhadas como torneios de tirar a argolinha:
“Em o Veado de Plumas — Sucedeu que, de tantos e tantos anos, o Rei mandava realizar umas Cavalhadas muito concorridas. Vinha gente até do fim do mundo a assistir. Todos os fidalgos corriam as justas, com lanças, tirando as argolinhas de ouro que eram dadas às damas, com muitos aplausos da multidão.
Em Maria Gomes: No dia de Santo Antônio o terreiro ficou negrejando de gente. Cavaleiros sem conta compareceram, vestidos luxuosamente. Logo ao começar a justa surgiu um cavaleiro desconhecido, coberto de prata, magnificamente montado e correu argolinhas com todos os outros vencendo-os facilmente. Trouxe todos os adversários e pôs as argolinhas no colo do Príncipe muito lisonjeado.
E em História do Papagaio: Trouxe uma cavalhada para correr argolinhas na porta da casa do amigo” (Enio de Freitas e Castro, As Cavalhadas de Vacaria, p. 29).
Também é tradição oral entre nós que a Cavalhada vem de Carlos Magno e rememora os torneios que os Doze Pares de França realizavam nos momentos de ócio, entre as lutas que empreendiam. Não era, portanto, uma luta entre cristãos e sarracenos. E tanto é assim que entre nós correm apenas doze cavaleiros divididos em duas alas de 6 cavaleiros chefiados respectivamente por Roldão e Oliveiros. Os restantes cavaleiros têm os nomes dos demais pares de França, segundo a versão portuguesa da História de Carlos Magno: Ricardo de Normândia, Gui de Borgonha, Guarim de Lorena, Lamberto de Bruxelas, Urgel de Danoá, Bosim de Genova, Hoel de Nantes, Duque de Regnier, Trietri de Dardânia e Duque de Nemé.
É verdade que uma ala veste blusa ou traz faixa e casquete azul e a outra encarnada, tal como nas Cavalhadas de Mouros e Cristãos.
Mas tal elemento pode ter sido posteriormente introduzido nas Cavalhadas de argolinhas, justamente através das Cavalhadas Dramáticas ou mesmo por intermédio das mouriscas e dos autos reinterpretados destas: Congos, Cabocolinhos, Quilombos etc.
Realmente, sabemos que o partidarismo das cores nos autos e danças já existia na Europa. Vinson (Folklore du Pays Basque, p. 316), nos dá notícia de que nessa região da França nas Pastorais há sempre turcos pagãos que os satanases ajudam e que os cristãos acabam por vencer e converter. O vestuário, diz aquele autor, não é exclusivamente de fantasia. Há peculiaridades obrigatórias, por assim dizer regimentais: O azul é desde os tempos imemoriais a cor dos bons, dos franceses, dos cristãos, a cor vermelha, dos maus, dos demônios, dos turcos, dos ingleses.
Entre nós, nas Cheganças, que são as nossas mouriscadas, os mouros trajam-se sempre de vermelho (Vê se eles vêm de Mourama, se eles trajam de vermeio, diz uma “peça” da parte dos Mouros na Chegança de Maceió) e os Marujos de azul e branco, azul ou somente branco, em algumas Cheganças.
Nos Quilombos, os negros trajam-se de calças azuis e os índios vestem-se de vermelho. Em alguns cabocolinhos como o de Porto Calvo, um partido traja-se de azul, outro de vermelho. E isso para não falar nos Pastoris e Baianas, onde a intromissão de cores, embora mais acentuada e importante talvez seja, contudo, mais recente.
De qualquer modo, o que parece é que foi através das Mouriscadas em qualquer de suas formas (pedestres, marítimas ou equestres) que se transmitiu este simbolismo de cores nos nossos autos, inclusive em nossa cavalhada de argolinhas que em Portugal, Espanha ou Latino-América, não possui, segundo vimos, qualquer distinção de cores ou partidos.
Tal uso de cores nas Cavalhadas como nos autos alagoanos, sobretudo nos Pastoris, parece ter sido um dos fatores mais importantes na manutenção, vivência e folclorização dos mesmos entre nós.
Mais ainda que nos Pastoris, as Cavalhadas são torneios e divertimentos executados por pessoas das classes mais elevadas da sociedade.
Como em Roma ou na Idade Média, Cavaleiros são indivíduos da mais alta escala social. A posse de um animal fino, a riqueza dos arreios, o gosto boêmio da competição, a elegância e o donaire exigidos e a própria tradição afastavam e ainda afastam, mesmo hoje, os peões, que, por não possuírem montaria, não se dão ao nobre exercício da equitação, e até mesmo pessoas das classes menos abastadas mas que por dever de ofício possuem e montam animais: vaqueiros, pajens, etc.
Assim, são os proprietários rurais: senhores de engenho, fazendeiros, seus filhos e parentes, negociantes abastados e de família tradicionalmente ligadas ao campo (ainda há muito bacharel senhor de engenho, como o escritor Júlio Belo, de Pernambuco), os principais elementos participantes das Cavalhadas.
Apesar, assim, de praticada por uma determinada classe da sociedade, a Cavalhada, pelo menos entre nós, nas Alagoas (e a melhor prova é sua ampla incidência no Estado e sua persistência até agora), é um divertimento do povo, um folguedo que arrasta para assisti-lo uma multidão pertencente a todas as classes sociais. E esta multidão não o assiste impassível, indiferente ou estranha ao torneio, mas se agita, “torce”, como nas partidas de futebol, toma parte na diversão, grita animando os cavaleiros, de sua cor ou partido, premia-os com fitas ou cortes de fazenda quando conseguem eles tornar-se vitoriosos ao tirar a argolinha, e chega ao ponto de invadir a pista, aventurar-se a ser pisoteada pelos cavalos, no afã de melhor ver, aplaudir e animar os cavaleiros. Uma Cavalhada, como um Pastoril em dia de coroação de Rainha, em Alagoas e até mesmo em Maceió, é um verdadeiro delírio.
É natural que para isso influa o “partidarismo das cores” que é uma instituição, um fenômeno talvez só existente, nos tempos atuais, pelo menos com essa intensidade, em Alagoas. Embora haja os verdadeiros “amadores” de Cavalhadas, os “connaisseurs” da arte equestre, aqueles que sabem quando um cavaleiro corre bem, quando faz as lanças dentro dos cânones tradicionais e por isso merece aplausos e louvores mesmo quando não consegue tirar a argolinha, a maior parte dos assistentes é de pessoas que torcem, que aplaudem, que gritam, que se entusiasmam apenas por seu partido: pelo azul ou pelo encarnado.
É este, aliás, um dos aspectos mais característicos de nossa terra. Folcloristas, escritores, viajantes que assistem em Maceió os nossos autos e folguedos ficam realmente admirados de encontrar durante uma certa época do ano — o período das Festas de Natal – toda uma população dividida, não em partidos religiosos, políticos ou esportivos mas em duas cores. Os meninos, os adultos, os velhos, pobres, ricos, remediados, operários, agricultores, comerciários, intelectuais, brancos, pretos, caboclos, todas as classes, culturas, raças são de um partido — ou o azul ou o encarnado — e nos Pastoris como nas Cavalhadas “torcem” e defendem com seus aplausos e gritos suas cores prediletas. Este fato, portanto, é importantíssimo, a nosso ver, para tornar estes dois folguedos (Pastoris e Cavalhadas) não somente de uma continuada vivência mas para transformá-los realmente em populares, folk, conquanto por suas origens e pelos executantes não sejam realmente populares.
Um outro fator que permite ainda a conservação da usança é o emprego do cavalo como animal de transporte em nossa zona rural. Conquanto o automóvel, o caminhão, o jeep estejam a invadir todo o Estado: a mata, o sertão, o litoral, fazendo uma encarniçada concorrência à Estrada de Ferro, o certo é que, ou pela topografia acidentada da zona da mata, ou pelas dificuldades de transporte e rarefação populacional na catinga sertaneja, o cavalo é ainda o principal animal de transporte na zona dos antigos engenhos, nas fazendas de criação de gado e no campo em geral. E não sabemos se um dia ele poderá vir a ser substituído em certas tarefas específicas — sobretudo a pega do boi, os trabalhos campeiros e da pecuária, por jeeps e lambretas. Cremos que não. E achamos que não é esta a causa única do desaparecimento do torneio equestre das Cavalhadas em algumas regiões que o possuíram. Talvez antes, como é o caso do Sul do país, mais que desuso do cavalo (que não existe ainda como se dá no Rio Grande do Sul) seja responsável por tal acontecimento a complexidade das Cavalhadas sulinas e ainda mais importante, talvez, a riqueza do vestuário, mais custoso e mais carnavalesco, usado pelos cavaleiros.
Em Alagoas, sabemos que outrora usavam os nossos cavaleiros trajes igualmente vistosos e caros: calça de brim, saiote de belbutina de cor, com babados e galões de ouro e prata; guarda-peito com medalhas, galões e torsais de ouro; capacete de pano de cor com os mesmos enfeites dourados; capa curta bordada com espiguilha doirada; Banda a tiracolo com bolotas e franjas; faca de prata, esporas do mesmo metal, lenço branco ao lado direito da cintura, rosa artificial, no cinto, do lado direito.
Esse traje, nestes últimos cinquenta e setenta anos, se vem modificando, substituindo-se por trajes mais comuns, menos vistos e caros. Em lugar do capacete usa-se hoje um simples casquete de pano, azul ou encarnado, ou, há uns trinta anos passados, um boné de cor, no formato dos usados outrora pelos viajantes. Tais bonés ou casquete são bordados de galões, enfeites e bolotas de cor. Em lugar do saiote, da capa bordadas e do guarda-peito, envergam os cavaleiros um paletó branco comum ou uma camisa de cetineta de cor.
Já os cavalos mantêm os enfeites de outrora: arreios com guizos tilintantes, medalhas e moedas de prata e ouro, flores de metal (ouropel); cabeçadas com torçal de ouro, prata ou seda; selas de confecção caprichada, mantas especialmente bordadas com as cores dos cavaleiros. E os cavalos são, hoje como outrora, escolhidos especialmente para o torneio. Animais de belo porte, grandes troteadores, corajosos e dispostos, mas obedientes às mãos sábias dos cavaleiros, de modo que se não possam desviar da pista e permitam ao seu cavaleiro realizar com as lanças as movimentações obrigatórias antes que sejam elas apontadas em direção à argolinha.
Mesmo a necessidade de ensaios longos e de longa antecedência não são fatores exclusivos que possam explicar, como querem alguns autores, o desaparecimento das Cavalhadas Dramáticas do Sul.
Porque entre nós, embora sem nenhuma dramatização, os nossos cavaleiros preparam-se para as corridas com vários meses de antecedência, sobretudo outrora quando a disciplina era mais rigorosa, as regras e cânones mais fielmente obedecidos, e mais que a conquista de prêmios à outrance, valiam o aprumo dos cavaleiros, sua elegância, a maneira correta de executar as diversas lanças, a regra clássica de tirar a argolinha, não pela movimentação da lança à procura da argola, mas pela movimentação do cavalo no rumo certo.
É bem verdade que atualmente alguns grupos, seduzidos mais pelos aplausos dos seus partidários, pelas vantagens materiais ou pelas honras com a conquista da argolinha, relegam ao abandono estes princípios e não levam, por causa disto, a tanto rigor, os ensaios e a disciplina necessários outrora ao interessante torneio.
Sinfrônio Vilela, um dos grandes matinadores do Estado, até há poucos anos organizador das Cavalhadas de Viçosa, fazia-me amargas queixas dos cavaleiros atuais que já não querem obedecer aos cânones que ele aprendera a obedecer dos seus mestres de cavalhadas — o seu pai, Coronel Joaquim dos Passos Vilela, e o seu tio (e meu avô materno) José Aprígio dos Passos Vilela, o primeiro senhor do Engenho Ingazeira, o segundo — o patriarca do Boa-Sorte. Já, dizia-me ele, não respeitam e obedecem intransigentemente ao matinador, não querem, nos ensaios, repetir as corridas mal executadas, infringem nos dias de corridas as “regras”, excedendo-se nas bebidas ou em congressos sexuais, fazendo turbulências várias. Motivos estes que, mais que a idade, fizeram-no renunciar à responsabilidade de matinador.
Será tal comportamento uma consequência dos novos tempos, do afrouxamento da disciplina, do cultivo do sucesso fácil, que responde naturalmente a uma mudança de comportamento da sociedade local. Sua adoção pelos cavaleiros atuais é um fenômeno, embora lastimável, perfeitamente compreensível. Talvez, sem tal acomodação tendesse a Cavalhada a desaparecer, por inadaptação às novas maneiras de pensar e agir. Se ela persiste, e com a animação que já assinalamos, é que ela, como outros folguedos alagoanos, tem sabido adaptar-se às novas condições de vida – fenômeno indispensável para a vivência de qualquer fato cultural, sobretudo folclórico.
Outro fator importante na mantença da tradição das Cavalhadas entre nós são certamente os prêmios.
Antigamente, parece que constavam eles apenas de fitas coloridas postas nas lanças dos cavaleiros que tiravam a argola, ou nos seus braços. Ainda hoje, a tradição manda que o primeiro prêmio conferido pela “mesa” ao cavaleiro vitorioso seja sempre uma fita que se amarra na ponta da lança, embora a própria “mesa” depois lhe conceda outros prêmios de maior valor.
Depois, começaram-se a usar, como prêmios, coisas de maior valor, sobretudo quando as fitas deixaram de ser objetos indispensáveis para o laço dos cabelos ou para as faixas das cinturas das damas e senhoritas. Então, veio o uso dos cortes de fazendas ou dos finos xales de seda e écharpes bordados, quando estiveram em moda.
Tais prêmios são amarrados nas lanças, nos braços ou a tiracolo, nos cavaleiros. Convencionou-se que os prêmios amarrados na lança destinam-se à oferta às pessoas presentes às Cavalhadas, geralmente pessoas de prol da localidade, ou da amizade do cavaleiro: namorada, esposa, filha, conhecidas, etc. As colocadas no ombro ou no braço pertencem ao próprio cavaleiro premiado; e ele as carregará até o fim da Cavalhada, levando-as consigo para casa. O que motiva, quando o cavaleiro é feliz ou destro e consegue fazer muitas lanças, que ele se transforme numa figura toda colorida, tantos e de tais cores são os cortes de fazenda que lhes enfeitam os braços ou o tronco e pescoço. E, demais, que, ao voltar aos seus lares, o faça carregado de troféus com que distribuir aos seus familiares, pois, embora pessoas de posse, não é desprezível que consigam abundantes prêmios, quer pela honra que isto significa, quer pelas vantagens materiais que acarreta.
E, a não ser tais prêmios, não recebem os cavaleiros qualquer pagamento por sua participação nas corridas. Apenas, o proprietário rural que convoca a Cavalhada para sua fazenda ou a “mesa” promotora do torneio ou responsável pela organização da “Festa” do Santo (quando é o caso de festas de padroeiros), dão hospedagem aos cavaleiros de fora da localidade, abrigam e mantêm os cavalos e os tratadores dos mesmos. Há geralmente banquetes, noitadas divertidas a que os cavaleiros são convidados de honra e onde são tratados, como figuras de projeção. Quando as Cavalhadas se realizam em localidades muito distantes das moradias dos cavaleiros, os organizadores arcam também com as despesas do seu transporte e dos cavalos e pajens, por ferrovia.
Há pagamento em dinheiro apenas para a banda de pífanos e zabumba, antigamente, ou no interior, chamada Terno de zabumba e atualmente Esquenta-Mulher, bandinha composta de dois pífanos, uma caixa, um bombo e pratos, que obrigatoriamente acompanha as Cavalhadas e que é paga diretamente pela “mesa”, quando há conjunto na localidade ou ao matinador quando não existe e tem de vir de outra cidade ou vila.
II
Jogo ou torneio equestre, necessita a Cavalhada de espaço amplo, de larga pista para sua realização.
Outrora, usavam-se as praças fronteiras às igrejas matrizes das paróquias. Eram, então, amplos e belos largos de pistas de areia ou barro, parcial e naturalmente gramados, e não como hoje nas cidades mais “adiantadas” pretensiosas pracinhas de calçadas de mosaico e de mofinos canteiros de flores e ficus benjamin, podados ao velho estilo da Praça Paris, do Rio de Janeiro. Nos antigos “quadros” do comércio ou da feira, nos largos das matrizes, etc junto com outros folguedos, com barracas de cavalinhos e carroceis, com tendas de bazares, de mesas de “caipiras” e de bozós, com tabuleiros de doces regionais ou de gostosas cocadas, uma ampla avenida era aberta para a pista.
A urbanização das cidades do interior afasta atualmente para outros locais: descampados próximos à cidade, ruas e largos ainda não pavimentados, campos de futebol, etc, o torneio das Cavalhadas.
A pista ou trilha para a Cavalhada deve medir aproximadamente 125 metros de comprimento por 5 a 6 de largura, distância, esta última a que se fincam os dois postes nos quais é esticada a corda que há de segurar a argolinha. De outra parte, os postes devem estar a 25 metros de distância do final da pista.
Em frente aos postes é geralmente colocado o palanque da Comissão Organizadora da Festa ou “Mesa”, em torno do qual se reúne a assistência mais qualificada e se colocam os lojistas com suas bancas de fazenda e fitas para os prêmios. Os dois lados da pista são por vezes demarcados com postes enfeitados com bandeirolas de papel de seda colorido.
Em Alagoas, o número de cavaleiros que compõem a Cavalhada é sempre de 12 pessoas. Representam os Doze Pares de França e levam as denominações que anteriormente transcrevemos. Algumas Cavalhadas, como a de Viçosa, costumam inscrever nas faixas que os cavaleiros usam a tiracolo os nomes dos personagens da gesta carolíngia que representam no torneio. Mas tais nomes, não adotados em todas as localidades e grupos, não são indicativos de função especializada.
Apenas, os quatro primeiros cavaleiros e os dois últimos recebem nomes especiais. Os dois primeiros, isto é, Roldão e Oliveiros, são chamados matinadores, corruptela da palavra mantenedores (campeão, cavaleiro principal nos torneios), empregada em outros Estados e países.
O primeiro matinador é a figura mais importante da Cavalhada. É quem dirige os ensaios e conduz o torneio. É sempre um dos cavaleiros mais antigos e mais destros. Ser matinador é um posto e um galardão. Em Alagoas, nos últimos tempos os dois maiores matinadores foram o Major João Camelo e Sinfrônio Vilela. O primeiro, proprietário da Fazenda Sapucaia, município de Atalaia, apresentou-se com seus cavaleiros, alguns seus filhos e genros na Cavalhada corrida em janeiro de 1952, no arrabalde de Bebedouro, Maceió, por ocasião da IV Semana Nacional de Folclore. Apesar de sua idade avançada e dos seus cento e tantos quilos de peso, ágil e proficientemente, ainda puxa seus cavaleiros em brilhantes arrancadas na corrida da argolinha ou nas escaramuças. O segundo, Sinfrônio Vilela, filho do Velho Quinca Vilela, senhor do antigo Engenho Ingazeira, Viçosa, durante muitos anos, em substituição ao seu pai, conduziu os cavaleiros viçosenses, entre eles o seu primo Getúlio Vilela e o folclorista Aloizio Vilela e formou a atual geração que, sob o comando de Apolinário Rebelo, se tem apresentado nas Festas Natalinas de Maceió.
Os dois cavaleiros seguintes são chamados de Amarra-Corda, pois lhes cabe, no começo das corridas, amarrar a corda que, esticada de um a outro poste, segura a garra e a argolinha.
Os dois últimos cavaleiros são chamados de Cobridores, pois devem fazer a cobertura da equipe. Devem ser também dos melhores cavaleiros, dos mais briosos, pois lhes pesa grande responsabilidade. Quando, numa das corridas, nenhum dos cavaleiros que os antecederem, nos seus respectivos cordões, conseguiu tirar a argolinha, têm eles por obrigação tirá-la, derrubá-la ou, pelo menos, tocá-la ou na garra, sem o que ficarão desmoralizados no conceito do público e particularmente dos seus pares.
Além dos cavaleiros, funcionam dois lanceiros, porta-lanças ou escudeiros. Um deles dá as lanças no ponto de partida e outro as recebe no fim da pista. Quando, numa Cavalhada, todos os cavaleiros carregam lanças, os lanceiros, na marcha inicial, levam, em lugar delas, estandartes com bandeirolas azul e encarnada, emblema dos dois cordões que vão disputar o torneio.
Precedendo os cavaleiros nos desfiles que fazem ao se dirigirem à matriz ou capela e, depois, ao local da corrida, toma parte na Cavalhada, como já adiantamos, a bandinha regional Terno de Zabumba ou Esquenta-Mulher. Essa bandinha que entoa músicas especiais para as diversas situações das corridas: saída dos cavaleiros, tirada da argolinha, toca no desfile uma marchinha que é imitada em forma de parlenda: “Cavalhada, peixe, pirão d’água” e que por esse nome é conhecida. Geralmente estaciona perto do palanque ou próximo ao ponto de saída dos cavaleiros.
Conquanto seja a corrida de argolinha a parte principal e mais emocionante do folguedo ou torneio, nela não consiste, porém, exclusivamente, a Cavalhada, entre nós. Antes da corrida da argolinha há a obrigatória visita à igreja e, além das corridas de lança, as demonstrações equestres, denominadas de Escaramuças. A parte final consiste na despedida, no acompanhamento da procissão (quando há), em nova visita à igreja e no agradecimento aos cavaleiros.
Assim, podemos dividir o torneio em quatro partes: 1) visita à igreja; 2) corridas; 3) escaramuças e 4) retirada.
1. Visita à igreja
Os cavaleiros, vestidos e paramentados no local onde se hospedam ou onde se reúnem, montam os seus cavalos. O que só devem fazer imediatamente antes de seguirem para o torneio, uma vez que estão proibidos pelo matinador de andar trajados, a passeio, pelas ruas, antes da hora marcada. Montados, dispõem-se em duas filas e assim, aos pares, precedidos ou “puxados” pelo Esquenta-Mulher seguem devagar, a passo para a porta da igreja. Seguram as rédeas dos cavalos com a mão esquerda e na direita (quando as lanças vão com os escudeiros) carregam um buquê de flores.
Ao chegarem em frente da igreja, cerca de 10 metros de distância, param. A bandinha de pífanos e zabumba prossegue até a porta do templo, onde estaciona. Então, toca e dá sinal aos cavaleiros que se encontravam parados, em fila dupla. Nesse momento, os dois matinadores “fazem perna” aos cavalos e arrancam em direção ao templo, onde param, riscando as patas dos animais nas pedras do pátio da Igreja. Tiram o capacete, boné ou casquete, colocam-no sobre a perna direita e, em seguida, voltam os cavalos, galopando até atingirem as filas dos cavaleiros. Aí se postam. Mas não onde se encontravam anteriormente à carreira; na frente; mas agora atrás dos últimos, isto é, dos cobridores. Em seguida, novamente a bandinha dá sinal e dois Amarra-Corda, isto é, os dois cavaleiros que ficam atrás dos matinadores, nas filas, fazem o mesmo que estes anteriormente fizeram: “dão perna” aos cavalos, disparam em direção à porta da igreja, retiram os casquetes, colocam-nos sobre a perna direita, voltam os cavalos e dirigem-se para a fila dos cavaleiros, ficando, por sua vez, com seus cavalos alinhados atrás dos matinadores. E, assim, sucessivamente, fazem todas as parelhas de cavaleiros — um do azul e outro do encarnado, até os cobridores.
Quando estes terminam sua carreira à frente da porta da igreja, se vão postar no fim da fila. Agora os matinadores, de novo à frente, saem em direção à porta da igreja. Param e desta vez se benzem. Voltam atrás para as filas e ficam, outra vez, atrás dos cobridores. Sucessivamente todas as parelhas repetem a manobra.
Numa terceira vez, os matinadores correm até a porta da igreja, estacam em sua frente, tiram a faca da bainha e, empunhando-a horizontalmente, beijam-lhe a lâmina. Como das outras feitas, voltam para as filas e ficam atrás dos cobridores. Há repetição por todos os cavaleiros da mesma manobra.
Em seguimento com os cavalos marchando em passada baixa, as duas filas de cavaleiros se dirigem para a porta da igreja. Desmontam-se e vão ao altar do Santo em honra do qual se realiza a Festa. Ajoelham-se, parelha após parelha, diante do altar, e rezam, fazendo preces para serem felizes no torneio. Deixam sobre o altar, como oferenda, o buquê que traziam na mão e voltam a montar os seus cavalos.
Quando não há igreja ou capela na localidade onde se corre a Cavalhada, arma-se uma barraca de palha onde, num altar improvisado, se coloca o santo da festa, trazido da igreja mais próxima. O que não se pode é, por falta de templo, dispensar a visita dos cavaleiros ao padroeiro.
2. Corridas
Tocando a marcha da Escaramuça, isto é, o “Peixe, pirão d’água”, a bandinha de pífanos e zabumba chama, então, os cavaleiros para o campo. Na mesma disposição que tinham ao marchar para a igreja, isto é, bandinha à frente, seguida pelos dois porta-estandartes ou porta-lanças, e pelas duas filas de cavaleiros, desfilam a passo os cavalos, através das ruas da cidade ou povoado, até o campo onde está a pista. Quando o grupo possui lanças para todos os cavaleiros, estes as empunham no desfile, segurando-as à altura de sua parte média e apoiando sua base no bico do sapato direito.
Tal marcha é sempre anunciada pelo constante espocar de foguetes soltados no percurso por pessoas previamente encarregadas pelos promotores da festa.
Chegados ao campo, os cavaleiros, sempre em duas filas, encabeçados pelos matinadores, dão três passeios ao redor da pista, passando por fora dos postes, e, depois, três outros por dentro, passando entre os mesmos, sempre “puxados” pela orquestrinha e pelos dois lanceiros. Quase ao terminar cada passeio, os cavaleiros aceleram seus cavalos, como se fossem dar uma corrida. E isto fazem, tanto numa ponta da pista, quanto na outra.
Chegados ao começo da trilha ou pista, os cavaleiros param em local que se denomina barraca (talvez outrora houvesse em tal sítio uma barraca de palha armada) e que deve ficar no lado oposto àquele onde se encontra armado o palanque da Comissão Julgadora. Os dois matinadores dão rédeas aos seus cavalos e postam-se não de frente para o fim da pista, como se encontravam, mas de lado, com as cabeças dos cavalos em direção aos postes do outro lado da pista. Então, as demais parelhas, sucessivamente, passam por trás das garupas dos cavalos dos antecessores, e se vão colocar, uma parelha em seguida à outra, lado a lado, até o começo da pista.
Iniciam-se, então, as corridas de parelhas. Os dois matinadores, sem as lanças, deixam seus lugares na barraca e, emparelhados, fazem uma carreira pela pista. Chegados ao fim desta, voltam-se em direção aos companheiros postados no início da trilha e com a mão direita lhes fazem um sinal, chamando nova parelha para a corrida. Então, se postam na mesma disposição que tinham na barraca, num dos lados do fim da trilha, aliás, no mesmo lado junto ao qual se arma o palanque da Comissão.
A parelha seguinte faz a mesma corrida e se vai postar ao lado da primeira, no fim da pista, e, assim sucessivamente, todas as parelhas. Nessas carreiras os cavaleiros seguram as rédeas dos seus animais com a mão esquerda e apoiam a direita sobre o quadril ou começo da coxa direita, espalmada, com o dorso ou com as pontas dos dedos. Aliás, esta é a posição em que deve ficar sempre a mão direita quando não se está a empunhar a lança, em qualquer momento da Cavalhada.
Havendo corrido todos os cavaleiros, deixam eles o local no fim da pista e marcham a passo, parelha após parelha, em fila dupla, em direção à barraca. Dão nova carreira em tudo igual à primeira e, após, identicamente, voltam pela trilha afora em demanda ao começo da pista. Mas chegado à altura dos postes da argolinha o cortejo para. Saem das filas, um por um lado e outro pelo outro, os dois Amarra-Corda e se vão colocar cada um junto de um dos postes, pelo lado de fora. Os lanceiros seguram-lhes os cavalos e eles trepam sobre as selas, junto aos postes. Recebem a corda (enrolada em tecido encarnado e azul a qual já traz amarrada a garra, gancho de ferro que vai segurar a argola) e tratam de amarrá-la aos postes de tal modo que a garra fique bem no meio e na altura conveniente.
Após, descem. Novamente montam-se e vão ocupar os seus lugares atrás dos matinadores. Prossegue a marcha dos cavaleiros até o começo da pista onde tomam posição na barraca, já referida.
Começa-se agora a terceira carreira de parelhas que é dada, portanto, já sob a corda amarrada. Correm todos os cavaleiros do mesmo modo e com o mesmo ritual que na primeira e na segunda. Em seguida, sai o cortejo, novamente, pela trilha. Ao chegarem sob a corda, param os matinadores e os que se lhe seguem. Os dois Amarra-Corda novamente se destacam das fileiras e, como da primeira vez, vão ficar junto aos postes, um de cada lado, por fora, com a mão direita encostada aos mesmos,
Então, o segundo matinador tira do bolso a argolinha, beija-a respeitosamente e a entrega ao primeiro matinador, ao seu lado. Este a beija igualmente e, depois, procura com a mão direita colocar a argolinha entre as duas extremidades da garra que funciona como uma pinça. Para verificar, depois de colocada a argola, se esta se encontra na altura conveniente, o primeiro matinador ergue-se da sela, apoiando-se sobre os estribos, e mede um palmo de sua cabeça para cima. A argola deverá estar a essa altura. Se estiver mais baixa ou mais alta, os dois Amarra-Corda, que já se encontram preparados, junto aos postes, sobem nas selas e ajustam a corda à altura assim determinada. O perigo é sobretudo para uma corda muito baixa que pode “encordoar” a lança, isto é, prendê-la.
Terminada a colocação da argolinha e ajustada a altura da corda, os dois Amarra-Corda voltam aos seus lugares nas filas. O primeiro matinador faz com a mão um sinal aos cavaleiros e os dois cobridores, isto é, os dois últimos cavaleiros, um por um lado e outro pelo outro, saem para a frente e se vão colocar antes dos matinadores. Os demais cavaleiros fazem o mesmo até que os Amarra-Corda se postam à frente do cortejo, ficando, então, os matinadores no fim. Assim prosseguem em passada baixa até quase o começo da pista. Aí chegando, enquanto os demais cavaleiros tomam suas posições na barraca, o primeiro matinador fica no centro do começo da pista, de costas, portanto, para a argolinha. O lanceiro aproximasse-lhe e lhe entrega a lança. Ele volta o rosto para trás, por cima do ombro direito, em direção à argola, como a fixar melhor o seu objetivo, torna-o para a frente, benze-se, endireita a faca na cintura e de um só golpe de mão, segura a lança quase junto ao meio. Como se estivesse com raiva, balança-a como a experimentar sua rigidez e “cobre-se” com ela, isto é, levantando a munheca, segura a lança horizontalmente um pouco à frente e acima de sua cabeça.
Dá, então, perna ao cavalo para a frente, vira repentinamente pela direita na direção contrária e, a toda carreira, dirige-se para a argola. Os pífanos e as caixas da bandinha do Esquenta-Mulher, postada quase sempre no começo da pista, perto da barraca, tocam a Marcha de Carreira, um acelerado ruflar de tambores como num marche-marche, enquanto o zabumba e os pratos silenciam.
Também de silêncio fica a assistência. Todos, em “suspense” os partidários do encarnado na expectativa da vitória do seu campeão, os do azul, naturalmente, desejosos do seu fracasso. Por vezes, quando não há cordas ou gradis isolando a pista, os partidários exaltados que desejam ver todas as peripécias das corridas e, sobretudo, a retirada da argolinha, invadem-na, mesmo a risco de serem — o que tem acontecido por vezes — pisoteados pelos cavalos, ou de prejudicarem a carreira de campeão, espantando o corcel e desviando-o da trilha.
O cavaleiro, esse, continua sua carreira em direção à argola. Mas, fazendo-o, executa com a lança antes de apontá-la à argolinha, vários movimentos em torno da cabeça, dos ombros, da cabeça do cavalo, conservando durante eles, porém, sempre a “munheca amarrada”, isto é, a mão que segura a lança fletida sobre o punho. Esses movimentos são diferentes de acordo com as carreiras. Na primeira, todos os cavaleiros devem levar a lança às costas, desmanchar o movimento por cima dos capacetes, até chegar com a munheca em frente ao rosto, quando, então, aponta, em movimento seguro, a lança em direção à argola.
Nessa, como em todas as carreiras, o cavaleiro deve executar os movimentos da lança com precisão matemática e num ritmo sempre igual de tal modo que ao chegar perto da argola a lança se encontre naturalmente apontada em sua direção. Será grave defeito procurar o cavaleiro alcançar a argola mudando com o punho a posição da ponta da lança. Depois dos movimentos executados em cada lança, a mão deve estar sempre firme, imóvel, e a direção deve ser obtida somente por intermédio das rédeas que guiam o cavalo na carreira.
Na segunda lança, leva-se ainda por trás da nuca, mas desmancha-se desta vez por trás, e inclina-se a ponta da lança para cima até atingir a argola. Na terceira, leva-se a ponta da lança para a frente, em direção à orelha do animal, volta-se com a mão para trás, levanta-se o braço e então, palmeia-se a lança, isto é, deflete-se o punho, ficando a palma para cima, abrem-se os dedos, deixando-se, assim, a lança solta na palma. Abaixa-se a mão de tal modo que as suas costas toquem o ombro direito, enrola-se novamente a munheca, segurando-se firme a lança, desmancha-se o movimento por cima da cabeça até fixar-se a mesma já próximo à argola. É uma lança muito difícil, conhecida pelo nome de “palmeada”.
Na quarta lança, desce-se com a mão até tocar no ombro direito, faz-se duas vezes a volta com a mesma, desmancha-se por cima da cabeça, até ficar ela em posição de atingir a meta.
Na quinta, leva-se o pé da lança para a frente do cavalo, enrola-se por cima da cabeça, bate-se com ela no ombro e desmancha-se pela frente. Na sexta carreira (que é a última) o cavaleiro mostra a munheca aos espectadores, isto é, estende o braço com a lança, dobra depois o antebraço sobre o braço e aponta a lança em direção à garra.
Nos movimentos bem executados da lança, da firmeza do pulso, ao apontar a argolinha, no garbo e donaire com que se conduz a carreira, no domínio sobre os corcéis em disparada, e, finalmente, na tirada da argolinha, está o mérito e a vitória do cavaleiro. Vitória que é sempre celebrada pelos gritos e aplausos dos partidários, pelos foguetes de estouro que espocam e pelo “baiano” da tirada da argolinha tocado pelo Esquenta-Mulher que assim celebra a vitória do campeão.
Tirada a argola, o cavaleiro para de costas para os outros cavaleiros no fim da pista e a conserva na lança. Descansa esta apoiando a mão na raiz da coxa direita e de tal modo que a ponta da lança cubra a orelha esquerda do cavalo e o pé fique voltado para a garupa e um pouco para a direita e para baixo.
Nesse momento a alegria é enorme no meio dos partidários do cordão a que pertence o cavaleiro vitorioso e entre seus amigos e parentes. Já os lojistas têm as peças de fazenda espalhadas sobre os balcões improvisados e a Comissão Julgadora ou a Mesa (chama-se assim a Comissão organizadora da festa do padroeiro ou as pessoas encarregadas da exibição da Cavalhada) já mandou cortar vários metros de fitas da melhor qualidade e alguns metros de fazenda custosa para premiar o cavaleiro vitorioso. Este aproxima-se agora do palanque da Comissão, e estende a ponta de sua lança onde o Presidente ou outro graduado amarra a fita da sua “obrigação”. Cercam-no depois os amigos e partidários e amarram-lhe fitas e cortes de fazenda na lança, no braço esquerdo, à tiracolo, no pescoço, etc.
Muitas vezes, seus próprios companheiros de partido ou mesmo da outra facção vêm premiá-lo. Recebidos os prêmios, o cavaleiro despeja a argola no chão pelo pé da lança, a fim de que ela seja novamente colocada na garra, por uma parelha de cavaleiros que o 2° matinador, da barraca, terá mandado repor. Do que, uma vez feito, a parelha de longe dará o sinal, com uma continência ao 1° ou 2° matinador.
Depois de receber todos os prêmios, o cavaleiro dirige seu cavalo em direção à igreja ou capelinha improvisada. Tem sempre o cuidado de, ao cruzar os postes da corda, fazê-lo por fora e não por dentro. É expressamente proibido a qualquer cavaleiro cruzar os postes por dentro. Só não poderá fazê-lo quando está desfilando, com todos os companheiros, depois de cada carreira.
Chegado à frente da igreja ele estende a lança e o sacristão ou a pessoa encarregada de vigiá-la, beija-a, desamarra a fita e um corte de fazenda e os recolhe para o “santo”.
Depois, é que o cavaleiro se dirige para a assistência e trata de oferecer às senhoras e senhoritas amigas as fitas e fazendas amarradas na lança. Atualmente o gesto é muito simples: o cavaleiro estende o braço e leva a ponta da lança em direção à pessoa a quem deseja ofertar. Esta retira o prêmio amarrado mais perto da ponta, agradece com um sinal de cabeça, com o que o cavaleiro se retira. A etiqueta antiga era, porém, mais complicada. Ao ofertar a lança o cavaleiro “fazia vênia”, isto é, levantava o braço e palmeava a lança, apresentando-a, pois, solta na palma, a fim de que a pessoa a quem se a oferecia, dela retirasse o prêmio. É natural que isso pudesse acontecer outrora apenas, quando os prêmios eram tão só fitas, de peso reduzido. Depois, quando ècharpes e cortes de fazenda passaram a ser amarrados, tornou-se difícil, se não impossível, fazer a oferta com a “vênia” que assim foi desaparecendo.
Distribuídos os prêmios, o cavaleiro vai colocar-se no fim da pista, do mesmo lado do palanque, em posição idêntica à que ocupava na barraca e aí espera, em forma, os seus companheiros.
Nesse meio tempo, tinha-se, como foi dito, reposto a argola no lugar e os cavaleiros que o haviam feito, após dado o sinal ao 2° matinador, voltado aos seus lugares.
Então, imediatamente, a bandinha toca a marcha de corrida e o 2° matinador que é do azul, trata de fazer sua carreira com as regras e técnicas já descritas. Se tirar a argola, repete-se o mesmo cerimonial e as mesmas práticas descritas anteriormente para o primeiro matinador: foguetes, “baiano”, da vitória, prêmios, gritos, alegria, contentamento entre os partidários do azul. Se não consegue tirar a argola é a decepção, às vezes a vaia, quando a assistência não prima pela boa educação, ou a discussão entre os partidários: “Fulano não tirou mas correu melhor!” “Foi o cavalo que espantou!” “É um azar!” “Nada, o encarnado é que é!” E assim todas as exclamações, desculpas, motejos de vencidos e vencedores.
Algumas Cavalhadas costumam erguer de um lado e do outro do campo, perto dos postes da corda, um mastro, pintado de azul, um, de encarnado, o outro do azul por onde subirão bandeiras dessas cores que indicarão o partido que está sendo vencedor: azul ou encarnado. Ou quando ambas as bandeiras se ostentam nos postes respectivos que as duas parcialidades estão empatadas. Noutros casos, sobem-se bandeirinhas em número indicativo das argolinhas tiradas.
Como, às vezes, dois cavaleiros tiram sucessivamente a argolinha acontece que um terceiro ou quarto cavaleiro já está correndo e seus antecessores ainda estão fazendo a distribuição dos prêmios.
Quando o cavaleiro não consegue tirar a argolinha, para o seu cavalo no fim da pista, volta-o depois pela direita atrás, entrega a lança ao lanceiro e, com a mão direita, faz em direção à barraca, no início da pista, uma saudação, avisando que pode vir outro cavaleiro.
Só então o seguinte companheiro se coloca no começo da pista e inicia sua carreira. Ao mesmo tempo, o cavaleiro que acabou de correr vai postar-se lado a lado, com os companheiros que se encontram no fim da pista, do lado do palanque.
Se por acaso o cavaleiro não consegue tirar a argolinha, isto é, trazê-la enfiada na lança, mas a derruba, é obrigado a recolocá-la na garra. Volta do fim da pista. E sem ultrapassar a corda para sob esta. Pendura a argolinha na garra. E daí faz sinal com a mão para a barraca e vai, então, ocupar o seu lugar ao lado dos companheiros que como ele já haviam dado a carreira, no fim da pista.
Correm todos os cavaleiros, um do encarnado e outro do azul até que chega a vez dos cobridores. Estes têm uma grande responsabilidade: devem sempre tirar a argolinha ou pelo menos derrubá-la, sobretudo se naquela corrida nem um só cavaleiro o tiver conseguido.
E a maior responsabilidade, então, é na quinta carreira. Nessa, eles não podem deixar de tirar a argolinha. Mesmo que o tenham feito em todas as quatro carreiras anteriores, se não o conseguem nessa considera-se como se não o tivessem feito. O matinador fica triste com o seu cobridor que lhe fez tamanha decepção e é obrigado, seguindo os cânones da Cavalhada, a chamar outro companheiro para lavar a desonra. O primeiro matinador, sempre acompanhado de sua parelha, coloca-se em frente dos companheiros e chama um cavaleiro que ainda não tenha tirado a argola durante todo o torneio. Este deixa o lugar onde se encontrava, perfila-se diante dos matinadores e leva a mão ao capacete, em sinal de respeito. O primeiro matinador, então, lhe ordena que vá tirar ou derrubar a argola. Recebe a lança em frente ao matinador e com ela colocada na perna direita, sai, por fora da trilha, até alcançar o local onde se dá início às carreiras. Se não conseguir tirar a argolinha, o primeiro matinador chama outro cavaleiro, sempre um que não tenha tirado a argolinha (O cânon tem, portanto, o objetivo a dar uma oportunidade de tirar a argola a quem ainda não o tenha feito) para correr. E assim por diante até que um dos cavaleiros tire ou derrube a argola nessa quinta carreira. Se alguém o conseguir, estoiram com maior intensidade os foguetes, as aclamações tornam-se ainda maiores para o partido a que pertence o cavaleiro e um novo cerimonial se passa entre o primeiro matinador e o cavaleiro vitorioso. Este toma a argolinha e leva-a ao matinador, beija-a e lh’a entrega. O matinador agradece ao cavaleiro e lhe dá um abraço em sinal de gratidão. O mesmo teria feito se fosse o cobridor que a seu tempo houvesse conseguido o mesmo.
Depois, os cavaleiros tomam os seus lugares nas filas e marcham a passo, pelo meio da trilha, em direção à corda.
Os Amarra-Corda, como de praxe, deixam seus lugares na fila e ficam, um de cada lado, junto aos postes, nos quais encostam as mãos.
O primeiro matinador entrega a argola ao segundo que a beija e lh’a devolve. Este, então, coloca a argola na garra. Continuam, depois, a marcha em direção à barraca onde se vão, por fim, colocar.
Este cerimonial efetua-se não somente na quinta carreira mas em todas as quatro anteriores, quando o segundo cobridor houver tirado a argolinha.
Na sexta carreira não é preciso mais tirar a argolinha. Para ter direito a prêmio bastará bater na garra. Por isso é chamada de “corrida na garra”. Naturalmente tal convenção só vigora quando os cavaleiros foram muito infelizes e alcançaram poucos prêmios. Em certos casos, deixa-se até de corrê-la, pelo adiantado na hora, mormente quando os preliantes já foram bem galardoados nas anteriores.
Eventualidade interessante das carreiras é quando um cavaleiro, ao executar com a lança os diversos movimentos já descritos, vem ela a escapar-lhe das mãos e cair. Imediatamente deve o cavaleiro puxar por seu punhal, embainhado, que se encontra na cintura e com ele armado tenta retirar a argolinha. O que é raro, dado o seu pequeno tamanho. O que não deve é ficar de mãos livres, ao passar pela argolinha. Esta é, segundo me informa Sinfrônio Vilela, o inimigo que se deve abater a todo custo. É um belo e inesperado lance que necessita de presença de espírito e quebra, de certo modo, a monotonia das diversas carreiras à argolinha.
Todas as regras e ritos da Cavalhada têm que ser fielmente cumpridos. Caso algum cavaleiro cometa algum erro, não somente será chamado à atenção pelo primeiro matinador, mas os próprios companheiros obrigam-no a pagar a multa, depois das corridas, geralmente garrafas de bebidas, cervejas etc. Em alguns lugares esse castigo é ordenado pelos próprios juízes ou membros da Mesa.
Além das que já enunciamos, são obrigações do cavaleiro, segundo me informaram Sinfrônio Vilela e Teodorico de Castro (que durante anos foram matinadores em Viçosa), o seguinte: não fumar, não beber, não conversar nem com pai, nem com mãe, só olhar para a frente, qualquer necessidade que tenha de sair da Cavalhada tem que pedir licença ao primeiro matinador, só se retira em companhia do seu par, não sai da fila senão virando o cavalo para trás, não se levanta da sela, apoiando-se sobre os estribos, não espora cavalo no meio da corrida, não se suspende num dos estribos, não encordoa a lança, isto é, não a deixa presa na corda, não procura a argola com a mão, etc.
Tamanha era a autoridade do matinador que ao tempo das milícias da Guarda Nacional um matinador de menor patente na Guarda podia comandar cavaleiros de maior patente que a sua. Dizia-me Sinfrônio: numa Cavalhada não há patente. O cavaleiro é um simples soldado à ordem do matinador. E tanto assim é que, durante uma Cavalhada, um cavaleiro não pode ser preso pelas autoridades. Só com ordem do 1° matinador. Naturalmente, como já adiantamos, todo esse código de obrigações e de privilégios dos cavaleiros tende a dissolver-se, a desintegrar-se com os novos padrões de comportamento moderno. Sinfrônio queixa-se sempre amargamente da atual inobservância deles. Diz-me: “Hoje eu não ensaio mais uma Cavalhada porque ninguém obedece. Cavalhada hoje é negócio. O cavaleiro quer é tirar prêmios, beber e levar a vida folgada. No meu tempo a coisa não era assim. Hoje se a gente vai falar com um cavaleiro e mandar ele repetir uma lança mal feita, ou se endireitar no cavalo ele quer puxar a faca para brigar. Não há mais respeito ao matinador. No meu tempo a coisa era outra. Quando eu corria cavalhada era matinador o meu pai ou o seu avô — meu tio Zé Aprígio. Uma vez, no Sabalanga, num ensaio, já nas buchas do dia da festa, eu fazendo uma lança tirei o pé do estribo. Meu pai me chamou, mandou que eu descesse do cavalo e entregasse a outro e não corresse mais. Disse para todo o mundo: Sinfrônio não vai correr mais esta cavalhada, arranjem outro. Todo mundo pediu, implorou, mas nada. Veio outro cavaleiro e eu não corri mais naquela Cavalhada. Naquele tempo era assim e assim foi que eu aprendi a correr Cavalhada. Tava canso de mandar Getúlio e Zé Aloizio (seus primos), Mané Loureiro ou Mácario voltar a fazer outra lança, e eles me obedeciam. Mas agora, essa rapaziada só quer é se mostrar, beber, namorar e não obedecer ao matinador. Hoje, repetia, Cavalhada é negócio.”
Realmente, o partidarismo das cores não deixa de influenciar a quebra dos antigos padrões de comportamento na Cavalhada. A paixão pelo azul e pelo encarnado não deixa de desintegrar o antigo código. Porque o que é preciso é que um dos partidos consiga a vitória para suas cores. Ganhará a vitória aquele que conseguir maior número de lanças feitas. Então, é um delírio, como numa vitória de Pastoril ou num campo de futebol, quando jogam os principais clubes da cidade. Há chapéus jogados para o ar, gritos, abraços entre os partidários, foguetes de estoiro, música até dizer basta. Há casos estranhos e exacerbados de “torcida”. Numa das últimas Cavalhadas exibidas nas Festas de Natal de Maceió, um partidário do azul, quando um dos cavaleiros desta parcialidade perdia a lança ou quando um contrário a alcançava, jogava-se ao chão, aos emboléus, mãos na cabeça, como se estivesse atacado de uma grande dor. E, como nos Pastoris, há discussões, e brigas.
Embora hoje todo o entusiasmo desapareça depois das corridas à argolinha, com a vitória de um dos partidos, a verdade é que a Cavalhada não se encerra com essa vitória. Ainda não está ela terminada. Devem-se-lhe seguir as Escaramuças, exercícios equestres variados.
Mas, cada vez, tais exercícios vão caindo em desuso pelo empolgante e pelo partidarismo das carreiras de argolinha. Muitas vezes, a Cavalhada começa tarde e não há tempo para correrem-se as Escaramuças. É, por exemplo, o que tem acontecido com a atual Cavalhada de Viçosa em suas apresentações pelo Natal, em Maceió. Não tem havido tempo para as Escaramuças. Mas os antigos matinadores protestam contra o não cumprimento da parte final da Cavalhada.
Recordo-me que; ainda em 1955, promovi, a pedido do governo do Estado, para uma reunião da Juventude Musical, uma exibição de Cavalhada, convidando o Major João Camelo para realizá-la, especialmente para os visitantes. E como só aos partidários e aos entendidos em Cavalhadas era interessante a assistência às seis carreiras à argolinha, propus ao Major Camelo que executasse as Escaramuças antes das carreiras de argolinhas, para que os visitantes pudessem apreciá-las, retirando-se, então, depois da primeira carreira à argola.
Pois bem, o Major João Camelo negou-se peremptoriamente a modificar a sequência tradicional do torneio, colocando as Escaramuças antes da corrida da argolinha e me disse: “Não tem importância, se não houver assistência para o restante da Cavalhada, eu farei sozinho com meus cavaleiros.” E assim aconteceu. Os congressistas tiveram que retirar-se, o público era pequeno e afinal, no vasto parque da Exposição Pecuária onde se realizou a exibição, ao final só estavam os cavaleiros, João Camelo e eu próprio. E já noitinha, não deixou de fazer ele a sua alocução costumeira de agradecimento aos cavaleiros.
3. Corridas de parelhas e escaramuças
A terceira parte da Cavalhada consta de novas corridas de parelhas e das Escaramuças.
Estas corridas de parelhas da terceira parte são muito mais complicadas e portanto muito mais belas que as três que precederam às carreiras de argolinha.
Na primeira, sai uma parelha, do começo da pista, em disparada, lado a lado, e no meio da carreira, à altura do palanque, troca um cavaleiro o seu casquete com o do companheiro. Em seguida, e sucessivamente cada uma das parelhas faz o mesmo.
Na segunda carreira, a parelha sai já com os lenços encruzados, isto é, um cavaleiro segura nos dentes a ponta do seu lenço e dá a extremidade oposta para que o seu companheiro a segure com a mão. Por sua vez, este faz o mesmo com o seu, encruzando-o, assim, com o do parceiro. E deste modo correm toda a pista. As demais parelhas, sucessivamente, executam idêntica manobra.
Na terceira carreira, as parelhas, uma após outra, correm abraçadas. Antigamente, os cavaleiros se beijavam durante a corrida, duas vezes antes de chegarem aos postes.
Depois das três carreiras de parelhas, fazem-se as Escaramuças, que são evoluções ou exercícios de equitação, não mais em parelhas ou isoladamente, mas em conjunto, todos os cavaleiros em suas fileiras.
O primeiro exercício é denominado de Oitos e Noves. Consiste em contornar cada fila os postes da argolinha. O primeiro matinador, a partir do início da pista, puxa sua fileira em direção ao poste da argola, um atrás do outro. Desce por dentro do poste do lado do palanque, adiante salta fora do trilho e faz a volta no fim da pista, voltando pelo outro lado e passando por dentro do poste novamente, até chegar ao começo da pista. Na última parte volta novamente. Quando o matinador desce, isto é, quando volta do fim da pista, ao chegar junto ao poste, para e deixa que os seus companheiros prossigam ficando ele no último lugar, e isso até voltar ao começo da pista. O segundo matinador, em seguida, executa com o seu cordão o mesmo que fez o primeiro matinador.
Terminada a manobra, passa-se aos Zeros também chamados de meia-lua. O primeiro matinador puxa sua fileira em direção ao fim da pista, passando entre os postes. Quando chega no outro extremo do campo, com os seus cavaleiros sempre em fileira faz, três vezes, as meias-luas ou voltas — os zeros. Ao atingir o fim da pista o segundo matinador, que se encontrava com seus companheiros na barraca, movimenta-se para o meio do começo da pista e aí faz também, 3 vezes, com seus cavaleiros, os zeros, ao mesmo tempo que o primeiro matinador executa a mesma manobra no outro extremo. Findas as três voltas, cada uma das fileiras marcha, pelo meio do campo, em direção à contrária. Encontram-se no meio do campo e ao passar uma fila pela outra, fazem-se continência. Prosseguem, o cordão azul em direção ao fim da pista e o encarnado em direção ao começo. Aí, os dois cordões repetem os zeros. Voltam e novamente ao encontrar-se no meio do campo, sempre em passada baixa, o primeiro matinador dá sua mão de amigo ao segundo. As demais parelhas repetem o gesto logo que passam uma pela outra. Repetem-se os zeros no começo e no fim da pista, retornam os cordões e ao cruzarem-se pela terceira vez puxam as facas das bainhas, beijam-nas, encruzam-na com a do parceiro do outro cordão, indo um até o fim da pista e outro até o começo.
O que foi até o fim da pista volta, em seguida, para a barraca onde encontra os seus companheiros do outro lado. Estão findos os zeros.
Brinca-se, então, o jogo dos biscoitos ou dos limãozinhos. Antes, porém, há ainda evoluções que poderiam ser denominadas de coração.
Os dois cordões saem da barraca emparelhados e marcham pelo meio do campo em direção aos postes. Pouco depois de atingi-los, um a dois metros, abrem-se em fileiras para os lados e agora bem distanciados, quase pelas laterais do campo dirigem-se ao fim da pista, contornam-no e vêm juntar-se ao meio do final da trilha, mudando a direção dos cavalos. Agora emparelhados, marcham, de volta, para os postes e aí abrem de novo o coração, isto é, afastam-se para as laterais que contornam e no começo da pista tornam a juntar-se. Uma terceira manobra é feita no fim da pista. Terminadas as três manobras, o primeiro matinador vai com os seus cavaleiros para o começo da pista enquanto o segundo se dirige para o fim da pista, o matinador faz uma meia-lua e segue por dentro do trilho até ficar junto ao poste. O segundo matinador faz a meia-lua no fim da pista e volta para os postes. Aí defronta o cordão encarnado. Então, cada um dos cavaleiros joga sucessivamente no seu opositor um biscoito que o outro procura apanhar, ou então, como antigamente, os limãozinhos de cheiro ou cabacinhas, para com elas atingir o seu contrário.
4. Retirada
Findas as escaramuças, faz o primeiro matinador sinal ao segundo e se aproximam, um do outro, sob a corda, combinando a retirada para a procissão. Então, um pega nas rédeas do cavalo do outro e chama os companheiros seguintes, que desfilam fazendo o mesmo. Passando em frente ao palanque, põem a ponta da faca embainhada sobre a coxa direita, beijando-a em seguida e fazendo continência em direção ao público em sinal de agradecimento.
Daí seguem para a porta da igreja, a fim de acompanhar a procissão, o que fazem, colocando-se logo após o pálio, capacetes sobre a coxa direita e lanças à mão direita, repousando o pé da mesma na ponta do sapato.
Recolhida a procissão, o primeiro matinador com seus companheiros fica a uma certa distância da porta da igreja. Então, cada parelha, sucessivamente, põe os cavalos a galope em direção ao templo a cuja frente estacam de repente. Depois do galope de todas as parelhas, já as duas filas completas, junto à entrada da igreja, tiram os cavaleiros o casquete e o primeiro matinador faz a sua saudação primeiro ao santo em homenagem de quem se realizam as festas, agradecendo-lhe pelo sucesso obtido no torneio e depois agradece aos próprios cavaleiros a sua dedicação, zelo, obediência, a vitória que alcançaram e o desejo de estarem ali sempre servindo à religião e à pátria.
O Major João Camelo dá em suas alocuções de despedida um tom verdadeiramente tocante e suas palavras parecem fazer-nos retornar aos tempos antigos, dos cavaleiros medievais que eles representam. E é tamanha a sua sinceridade, a emoção que ele emprega em suas palavras que sempre termina chorando ao abraçar, um por um, os seus companheiros, agradecendo-lhes os serviços prestados e pondo-se à disposição dos mesmos para quaisquer eventualidades.
Finda a despedida, os cavaleiros vão levar os seus chefes em suas residências. Recolhem-se, em seguida, para suas casas com seus troféus e presentes, recordações de um belo torneio em que os homens pacíficos de hoje continuam as tradições de seus ancestrais. Muitas vezes, depois de retirados os prêmios que carregam nos braços e à tiracolo, desmontam-se e vão com os amigos e companheiros comemorar com brindes de cerveja a vitória que alcançaram.
Variantes
Em algumas Cavalhadas há variantes da descrição acima. Por exemplo, na Cavalhada de João Camelo, há sempre, enfileirados antes do poste da argola, postes ornamentais. E é entre eles que os cavaleiros passam, contornando-os e fazendo ziguezagues nas Escaramuças dos oitos e noves.
Houve em Alagoas, antigamente, Cavalhadas de Bobos, ou mascarados realizadas geralmente pelo carnaval. A argolinha era uma rosca, e os mascarados, fantasiados à vontade, faziam pantomimas e cenas burlescas. Às vezes, podia aparecer um cavaleiro de fora que, mascarado, mandava um parlamentar ou pajem pedir licença ao matinador para correr.
Havia também a Cavalhada julgada. Nesta a Comissão escolhe dois antigos cavaleiros ou dois conhecedores que vão julgar os cavaleiros não somente no procedimento como na maneira como fizeram as carreiras. Caso haja empate entre dois cavaleiros, depois das escaramuças faz-se o desempate. As duas parelhas empatadas vão novamente correr a argolinha. Sai um cavaleiro de uma das parelhas para fazer a lança. Mas o cavaleiro contrário fica com a mão em sua lança em posição de ameaça, junto ao poste para tentar, na passagem do seu contrário, desviá-lo. Vai depois o segundo cavaleiro e faz o mesmo, tendo o seu opositor no poste para desviá-lo. Quem se sair melhor é proclamado vencedor dando-se-lhe o prêmio da Cavalhada julgada. Este prêmio pode ser a “mesa” isto é, uma mesa preparada com bolos, vinhos, cerveja, comidas várias que arrumada em tenda, ao lado do palanque, fica em exposição e é oferecida ao cavaleiro vencedor.
Quando numa Cavalhada julgada a comissão, geralmente integrada por três ou cinco juízes, decide-se por um cavaleiro, apregoa que se algum dos cavaleiros não estiver satisfeito com aquele julgamento pode desafiar o vencedor para uma nova carreira à argolinha disputando-a como se tivesse com ele empatado, na forma já descrita.
Embora tenhamos assinalado não existir em Alagoas as Cavalhadas de Mouros e Cristãos, tivemos recentemente notícias de que por duas ou três vezes, em Chã Preta (município de Viçosa), na própria cidade de Viçosa e em Palmeira dos Índios, cavaleiros viçosenses realizaram uma pequena dramatização com combate entre um mouro e um cavaleiro cristão. Os informantes — Sinfrônio Vilela e Antônio Teixeira — que foram os protagonistas do episódio, sobretudo o primeiro, me informaram que a dramatização foi criada pelo primeiro e que tal episódio não existia nas antigas Cavalhadas organizadas por seu pai — Joaquim dos Passos Vilela e seu tio (meu avô) José Aprigio dos Passos Vilela.
Sinfrônio é profundamente lido na História de Carlos Magno e solicitando-nos o nosso exemplar da História do Imperador Carlos Magno e dos Dozes Pares de França (a nossa edição, traduzida do castelhano em português com mais elegância por Jerônimo Moreira de Carvalho, Lisboa, Impressão Régia, é do ano de 1814), abriu exatamente no livro primeiro da segunda parte e aí passou a nos ler os capítulo II: Das festas, que se fizeram os Pares em Paris, por obsequio à chegada de Floripes; capítulo III: Como se fizeram as justas, e de dois cavaleiros que entraram na praça desconhecidos, e do que disseram; capítulo IV: Como os dois cavaleiros se investiram, e batalharam; e da discórdia que entre os Pares, e os Príncipes cortezões houve por este motivo; capítulo V: Como o cavaleiro de Galiana deu a sua embaixada, e entregou ao Imperador uma carta do seu Rei de Toledo: e do que o Imperador disse…
Sinfrônio adaptou o episódio às nossas Cavalhadas, substituindo as lanças por espadas, e os elmos por máscaras. As embaixadas proferidas por Bradamante, o cavaleiro de Galiana, e as respostas do Cavaleiro do Girasol, que era Roldão, são exatamente as mesmas da edição portuguesa da História de Carlos Magno.
Desse modo a constatação de que existiu (e executou-se este ano na apresentação da Cavalhada de Viçosa, no encerramento das Festividades Natalinas promovidas pela Prefeitura Municipal de Maceió) uma luta de mouro contra cristão em nossas Cavalhadas não invalida os comentários feitos na primeira parte deste trabalho, mas, ao contrário, serve até para confirmá-los.
Résumé/Summary
Le professeur Théo Brandão (Université d’Alagoas) a pour sujet un tournoi médiéval (cavalhadas) encore vivant dans son état du NordEst. II décrit en détail les quatre parties de cette compétition à cheval, qui a son climax avec une joute d’anneaux et une série d’escarmouches. Les cavalhadas sont également connues dans les états du Sud, comme un combat équestre entre Chrétiens et Maures, et d’elles font partie les escarmouches et la joute d’anneaux. L’auteur dit que cette vieille rivalité a son expression à Alagoas dans un drame naval, la chegança, et soutient qu’il n’y a pas de rapport entre la variante des cavalhadas du Nord-Est et les-mauresques de Portugal.
Professor Théo Brandão (University of Alagoas) deals with a mediaeval tournament (cavalhadas) still performed in his Northeastern state. He describes in detail the four parts of this competition on horseback, which culminates in a ring contest and in a series of skirmishes. The cavalhadas are also known in the Southern states, as an equestrian battle between Moors and Christians, and have as part of them the skirmishes and the ring contest. The author says that this old rivalry has its expression in Alagoas in a naval drama, the chegança, and contends that there is no ground to relate the Northeastern version of the cavalhadas to the Moris-cos of Portugal.
Gostei das informações porque serve de base para as épocas atuais.!
Excelente estudo de Ticianeli. Muito bem pesquisado e ilustrado com belas fotos. Parabéns! A linha histórica das manifestações dessa tradição denota erudição e seriedade da pesquisa. Novamente, parabéns!