Zito Cabral, alma de gigante num corpo de passarinho
O semanário Opinião de 13 de junho de 1982 publicou esta entrevista com o jornalista Zito Cabral para lembrar o primeiro aniversário da sua morte. A entrevista foi concedida a Tobias Granja e Teófilo Lins, que também já não se encontram entre nós. Tobias foi assassinado dois dias depois da publicação desta entrevista. Os três faziam parte do primeiro time do jornalismo alagoano daquela época. A conversa entre eles é uma aula de jornalismo.
OS JUSTOS NÃO MORREM
HOMENAGEM PÓSTUMA DE OPINIÃO AO JORNALISTA ZITO CABRAL, CUJO PRIMEIRO ANIVERSÁRIO DE MORTE É HOJE LEMBRADO
Nasci nas brenhas do Engenho Boa Esperança, no Pilar bom de bagre, isso nos idos de 37, precisamente a 4 de dezembro, em cima dum colchão de capim e debaixo duma noite escura que nem breu. Saí miúdo, resumido na altura e na largura, o mais magro e de menor estatura dos seis filhos de Suzana e Luiz Ramos Cabral.
Cresci livre como um pássaro, inundado de verde na alma e nos olhos, mergulhado nos canaviais, sentindo o cheiro bom do mel fervendo na tacha do banguê do meu avô Pantaleão. Menino, o mundo que me cercava era aquele de todo pequeno engenho em seus últimos dias, na decadência que era a véspera da industrialização.
Andei escanchado em cangalha sobre lombo de jegues, vi canas serem trazidas do campo em carros de boi, vi o suor mal pago do trabalhador doente, sofrido e na eterna desesperança. Já então, naquele tempo de observações infantis, entre banhos de açude e intermináveis caminhadas de peteca na mão, já se formava a minha personalidade de rejeição das injustiças sociais.
Era a rotina sem fim que escravizava, das cinco da manhã às nove da noite, o fornalheiro, o mestre de açúcar, o caldeireiro e toda uma equipe de miseráveis. A mesma vida, o mesmo destino, as mesmas desesperanças que viveram seus pais, seus avós e a que fatalmente seriam entregues seus sucessores.
Em quatrocentos anos de história, o açúcar melhorava em máquinas e processos, como quem sai do jumento para o concorde, mas o trabalhador vivia no mesmo, como ainda vive, condicionado a uma única alegria: a cachaça na feira do fim de semana.
A QUEDA DOS CORONÉIS
Do açúcar bruto ao refinado, fase que se confunde com minha infância, homens como o major Antônio Pantaleão de Moraes entraram em insolvência pela inviabilidade dos engenhos ante a avalancha da sofisticada industrialização. O açúcar branco sepultava os banguês e iniciava a queda dos coronéis, pois houve quem de repente perdesse tudo, sem qualquer perspectiva para outra atividade.
Foi quando meu pai mudou-se para o Pilar, comprou um carro e tornou-se motorista profissional. E passei a frequentar escolas onde predominava o banco de tira e a disciplinadora palmatória. Daí parti para o Grupo Escolar Oliveira e Silva, onde conclui o primário. Depois, no Ginásio N.S. do Pilar, fundado pelo padre Arestides Paiva. Afinal, como todo político militante, os estudos foram bruscamente interrompidos pelas perseguições políticas antes e depois de 1964.
SER JORNALISTA
– Ser jornalista é ser o que?
– É ser defensor dos humildes – na feliz definição de David Nasser, que encampo com todas as letras: “Defensor do homem contra o automóvel, da carne contra o porrete, do salário contra a erosão, do pedestre contra o ônibus, da vaia contra o farsante, do grito contra o silencio, da verdade contra a hipocrisia, do direto contra o indireto, da igualdade contra a discriminação, o jornalista é o homem da rua, o conselheiro invisível, o amigo sem nome, o irmão desconhecido. Está em todas as horas da pátria, da independência, da abolição, da república e da liberdade. Esse poderoso anônimo que fala por todos, esse gigante sem rosto, quando deve falar por si, cala-se”.
– Na sua opinião, qual o melhor jornalista brasileiro?
– Há tantos bons jornalistas sem jornal para escrever e, mesmo nessa hipótese atendida, sem oportunidade de se revelar, que seria injustiça relacionar. O bom repórter furão muitas vezes é um péssimo redator. Graciliano Ramos, o maior dos nossos escritores, teria sido um bom jornalista? Bercelino Maia, bom na gramática e no texto, rico na imaginação e como tituleiro, não teria superado David Nasser se o cavalo selado houvesse passado à sua porta no momento certo?
Além disso, já não se faz jornalismo como antigamente… No meu tempo de Gazeta, com Zadir Cassella – que foi um grande mestre – e com Rodrigues de Gouveia – outro genial formador de profissionais – o jornal era feito sem os modernos recursos de hoje.
Não havia sequer carro para o repórter, que andava a pé ou de ônibus e tinha, de quebra, que fotografar. Não havia copy-desk nem diagramadores, nem editores setoriais, nem mesmo chefe de reportagem.
O jornal era todo revisado pelo secretário e dali levado pelo chefe da oficina, o competente Zacarias Santana, que distribuía a matéria nas linotipos, cuja composição era encaminhada a paginadores de oficina que apenas obedeciam a espelhos ligeiros, feitos a olhos nu, quando as matérias começavam numa página e terminavam bem, adiante.
– E alagoano – passado e presente?
– A pergunta anterior responde a esta.
GUERREIRO
– Seria guerrilheiro?
– A guerrilha é um ato revolucionário que exige convicção, renúncia, idealismo, conformismo e coragem. Fora disto é aventura, utopia. Eu não sou aventureiro, sou jornalista e para desempenhar minha missão o fuzil é a caneta, com sacrifícios incontáveis.
UM EPISÓDIO: O “CAPA PRETA”
– Conte um caso pitoresco de sua vida jornalística.
– Era um tempo sem notícias, muito quieto, a redação numa monotonia de desesperar. Jorge Oliveira, hoje um nome de peso na imprensa nacional, era meu auxiliar na página policial do Jornal de Alagoas.
Sem manchete para a página, o Jorge coçou a cabeça e sugeriu: vamos lançar o capa preta! No dia seguinte o jornal estampava que o terror dos namorados atacava vestido de capa preta na praia de Pajuçara, jurisdição do 2º Distrito, cujo delegado era o iniciante Valter Moreira. O local foi escolhido cuidadosamente, pois a cascata não vingaria com um delegado de tarimba como Rubens Quintela e outros.
Mantivemos o “Capa Preta” nas manchetes por quase 90 dias; ele aparecia e voltava, dependendo da falta de assunto na redação. No momento oportuno. Jorge e eu fabricávamos cinco a seis laudas com os lances dramáticos do marginal, ora perseguindo vigias, ora roubando ou espantando namorados de beira mar, atacando pescadores de tarrafa nas praias.
Até que, um dia, o Jorge e eu concluímos que era preciso oficializar a existência do bandido. Soubemos que um vigia fora atacado por um vagabundo qualquer, em Jaraguá, e, após localizá-lo, o levamos a Rádio Patrulha, onde o capitão (hoje major) Nilton Rocha registrou a queixa.
O homenzinho disse que fora atacado à noite e que o agressor estava vestido de preto. Não precisa dizer que no outro dia foi manchete das boas. Mas como tudo cansa, era preciso acabar com o Capa.
Todo mundo andava amedrontado na região do 2º Distrito quando foi preso um marginal vestido de saco de estopa. Ele havia arrombado algumas casas, em dias alternados, e ao ser visto no xadrez pelo Jorge Oliveira, este não vacilou – Este é o Capa Preta!
O delegado ficou convencido ante a palavra sem vacilação do companheiro. O preso foi fotografado sob todos os ângulos possíveis, mas havia um problema: não existia um capote ou capa preta.
Isso foi a nossa dor de cabeça, na redação, horas após, já reveladas as fotografias. Novamente o espírito imaginoso e gozador de Jorge Oliveira veio em socorro: conseguiu no arquivo uma ótima foto de um bispo. Com muita arte, Jorge cortou a cabeça do bispo e a substituiu pela cabeça do marginal. Mas havia um tremendo crucifixo no peito do religioso, que ele pintou de preto e a coisa ficou perfeita. No dia seguinte chegava ao ápice a odisseia atribulada do incrível homem da capa preta em primeira página de jornal.
CORONEL ADAUTO
– Qual o melhor Secretário de Segurança que passou por Alagoas?
– Coronel Adauto Gomes Barbosa. Foi o único a desarticular o sindicato do crime e colocar poderosos nas grades. Como ser humano, falível, teve grandes defeitos que foram superados por virtudes maiores. O delegado arbitrário denunciado pela imprensa era de imediato afastado da função para a instauração do inquérito. Nunca silenciou as denúncias da imprensa.
AMARAL
– Coronel Amaral é anjo ou demônio?
– É um ser humano, somatório de virtudes e defeitos na definição de Divaldo Suruagy.
– Governador do Estado, você o manteria como Secretário?
– Não sou Governador nem tenho esperanças nem vocação. Não opino sobre hipóteses.
– Governador do Estado, qual o seu secretariado?
– Prejudicado.
– Suruagy ou Guilherme Palmeira?
– Um não exclui o outro. Os dois se completam e são meus amigos…
– Castelo Branco ou Costa e Silva?
– É difícil. Só a História saberá julgar.
– Carter ou Nixon?
– Martin Luther King e nenhum dos dois.
PREFERE A PRESÃO
– É perigoso ser repórter policial?
– É. E o perigo é cada vez maior, quanto mais for a perspicácia do jornalista. Nos grandes acontecimentos o repórter policial muitas vezes fica no meio de dois fogos cruzados. De um lado ele tem contra si os familiares da pessoa que é o centro dos acontecimentos e onde se situa a notícia. Do outro lado, se vê às voltas com a própria polícia criando mil e umas dificuldades e obstaculando toda e qualquer informação, chegando muitas vezes às ameaças e até a prisão.
O repórter começa a sentir as pedras caírem em seu caminho e aí reage com todas as forças para cumprir a sua missão.
Se o assunto se prende à causa de um crime misterioso, ele utiliza as suas fontes, mergulhando no mundo das confidências. Para isto o repórter deve possuir uma grande rede de amizade e desfrutar de confiança ilimitada.
Enquanto a polícia afasta o repórter, o povo dele se aproxima e presta informações certas ou erradas, cabendo ao mesmo confirmá-las.
Juntando um fato daqui, outro dali, o repórter vai montando o seu quebra cabeça para a bomba final, sem esquecer de alimentar diariamente o seu jornal dos fatos relacionados mesmo assunto.
Quando ele é senhor da situação, estoura a bomba, sendo de preferência contar o santo e o milagre na primeira reportagem, sem deixar qualquer brecha para a entrada de outro concorrente no dia seguinte.
Se em outro episódio o fato se relaciona com a localização de um fugitivo, o repórter não se faz por menos e entra em cena. Bem o trabalho não é iniciado, volta o mesmo chavão policial: jornalista prejudica as diligências.
O bom repórter sabe qual é a sua missão e parte para ela: localiza o criminoso, o bandido, o fugitivo, quer seja na mata ou na caatinga, na cidade ou na estrada, até em outros Estados. Ouve-o com paciência e isenção, anota toda a história sem interromper a narrativa, para depois fazer as perguntas e estampar a matéria no jornal do dia seguinte.
A polícia se exalta, blasfema e, na maioria das vezes (99 por cento), Secretário de Segurança manda deter o repórter para saber como conseguiu as informações ou como chegou ao fora-da-lei. Aí é que o repórter honra a profissão: prefere ser preso a denunciar o paradeiro do entrevistado.
PÃO E PAZ
– Se você falasse em nome dos brasileiros, qual a frase que diria ao Papa?
– Redobre a luta pelo pão dos pobres e pela paz no mundo.
– Existe abertura política?
– Existe. Ela foi fruto da luta árdua e da resistência democrática. É por ela que o público começa a ter acesso a milhares de informações antes sonegadas. Cabe agora aos políticos, aos estudantes, intelectuais, artista, operários, dar continuidade à luta para o aperfeiçoamento e consolidação do Estado de Direito.
É justo que se ressalte que para a conquista do atual estágio de abertura, enquanto se verificava a omissão da Justiça – precisamente quem mais prerrogativas perdeu, o Poder mais atingido para Ditadura -, foi decisiva a participação da Ordem dos Advogados e da ABI. Desde 64 foi incansável a luta da OAB e da ABI, entidades que merecem a gratidão de toda a Sociedade brasileira.
AMIGOS DE FÉ
– Cite o nome de três amigos de fé.
– Olha, a grandeza desta pergunta me comove e por isso eu vou responder com a observação feita pelo engenheiro Ruy Guerra, diretor do DER ao se encontrar comigo no Rio: “Zito, você tem tanto amigo em Alagoas, mas tanto amigo, grande e pequeno, que você não pode nem imaginar”. Seria impossível relacionar tão poucos sem o risco de cometer injustiça a tantos.
– Cristo foi socialista?
– Há trechos mais contundentes na Bíblia do que em “O Capital”. Quem lê atentamente os dois concluirá facilmente pela afirmativa.
– Dê um conselho aos seus filhos.
– A realização se faz com estudo, trabalho e honestidade.
– Qual o melhor livro que você já leu?
– Em literatura, “Vidas Secas”.
DIRETOR DE JORNAL
– Se você fosse montar um jornal quem seria o Diretor?
– Eu compraria, por qualquer preço passe do Diretor da TRIBUNA, porque Noaldo Dantas sabe, como poucos, fazer sobreviver uma empresa em crise.
– E a equipe? Cite cinco nomes a serem convocados.
– Eis aí uma resposta difícil, não por falta de valores em Alagoas, mas por falta de condições financeiras no mercado para a contratação de bons profissionais. Como se poderia formar novamente um time de repórteres e redatores com Tobias Granja, Juarez Ferreira, Freitas Neto, Luiz Renato de Paiva Lima e Nllton Oliveira… E o segundo escalão Bem, mas a responsabilidade seria do diretor…
VIDA E MORTE
– Defina a vida. E a morte?
– Viver é participar. Morrer é sequência da vida.
– Como anda o Brasil?
– Com uma inflação de 100 cento, vai mal.
– Lema da vida?
– Trabalhar.
– Qual o pior defeito do homem?
– A covardia
– O povo brasileiro ouve ou apenas está deixando de morrer?
– Íntimo da miséria da dor, o povo já não vê assombro na morte.
Parabéns e obrigado pela publicação. A vida não me deu o prazer de conhecer meu tio, mas fico muito emocionado e feliz pelos seus ideais, sabedoria, trabalho e senso crítico impressos nessas palavras.
Obrigado
Carlos Natan Cabral
Gostei do texto, gosto muito de ler sobre as histórias de Alagoas.
Como filho e pouco conhecedor da sua inteligência, hoje ponderadame te posso afirmar que poucos tem um inteligência tão brilhante e quão foi o tempo que levou para entender o quanto meu pai foi um homem brilhante.Alma de gigante em um corpo de passarinho.