Márcio Canuto, o agitador das torcidas

Márcio Canuto e Jacozinho, no Maracanã, lembram do famoso gol com passe do Maradona

Edberto Ticianeli

Lembro do Márcio Canuto, o filho do atleta e professor Luiz de França Canuto e de D. Eunice Accioly Canuto, ainda como atleta de basquete nos anos 60, principalmente pela histórica perseguição que ele empreendeu para agarrar o Galvaci após um desentendimento na quadra de esportes do antigo Ginásio do Colégio Estadual de Alagoas.

Claro que o atual engenheiro José Galvaci de Assis Aquilino escapou após correr, escalar e pular por todos os lugares possíveis dentro do ginásio e porque o Márcio cansou de persegui-lo.

Giraldo, atacante do CSA, Márcio Canuto e Zé Muniz, dirigente do CSA, conversam em 1968 na porta da Gazeta na Rua do Comércio

Entretanto, o episódio que me fez prestar mais atenção ao repórter do rádio esportivo alagoano aconteceu no Estádio Severiano Gomes Filho, o popular campo do CRB na Pajuçara. Vale lembrar que Márcio Canuto começou sua relação com o futebol ainda no início dos anos 60, como jornalista.

Era um domingo dos últimos anos da década de 1960 e o CRB enfrentaria o CSA numa partida que não tinha empolgado as torcidas. Era um jogo frio, daqueles que não decide coisa alguma.

Passava um pouco das 3 horas da tarde e alguns torcedores “testemunhavam” o jogo preliminar. Márcio Canuto já estava na “pista”, ou seja, na estreita faixa de terra entre o campo de jogo e o alambrado, onde alguns bancos acomodavam radialista, jogadores e cartolas.

Em 1965 o CSA venceu o CRB por 3 x 1 na Pajuçara. Na foto o gol de Arcanjo do CSA

Nada acontecia de importante e os locutores e repórteres se esforçavam para encontrar o que transmitir em um estádio que somente se ouvia: “Óia a geladinha! Tem de ‘morongo’, coco, baunilha e maracujá!”.

De repente, Márcio Canuto percebeu que havia uma faixa de tecido branco, com alguns dizeres em favor do CRB, esticada entre dois dos coqueiros que ficavam atrás da trave dos fundos do estádio.

Imediatamente procurou um dirigente do CSA e lhe perguntou se aquela propaganda prejudicaria a visão dos atletas no momento das conclusões das jogadas, considerando que o travessão da baliza também era branco.

Ele concordou e o repórter avançou nas suas intenções:

— O senhor acha que deve ser retirada a faixa?

De posse da resposta afirmativa, já transmitida pelo Rádio — na época todo mundo tinha um “radinho” no ouvido —, foi até o banco do CRB, explicou a um dos seus dirigentes a reclamação do CSA e indagou se ele pretendia atender o pedido e retirar a propaganda do CRB.

De jeito nenhum! O mando de campo é nosso, o estádio é nosso e quem manda aqui somos nós. A faixa fica! —, respondeu o mandatário regatiano.

Márcio voltou até onde estava o pessoal do CSA e ouviu dos cartolas que se não fosse tirada a faixa os azulinos não entrariam em campo.

Pronto. A confusão estava formada e a esta altura já tinha torcedor azul se atracando com torcedor rubro e quem estava em casa correu para o estádio para assistir aquele jogo “quente” que começaria às 16 horas.

Márcio Canuto cobrindo a inauguração da Federação Alagoana de Desportos Amadores (FADA) em 1969. Com ele os repórteres Laerson Silva e Raimundo Nonato

Jacozinho

Muitos anos depois, assistindo a outro episódio envolvendo o Márcio Canuto, esse fato me veio à lembrança e me fez refletir como fazia a diferença tratar de forma criativa os acontecimentos do mundo dos esportes.

Esse outro momento a que me refiro ocorreu envolvendo o jogador Givaldo Santos Vasconcelos, o Jacozinho. Um atleta sergipano de 26 anos de idade e 1,62 m de altura, que foi retirado do lugar comum do mundo do futebol por suas qualidades técnicas e porque o Márcio Canuto viu nele o personagem ideal para “agitar” as torcidas.

Mas vamos ao fato.

O técnico Evaristo Macedo, que havia assumido a Seleção Brasileira de Futebol em 4 de fevereiro de 1985, observava os jogadores que disputavam o Campeonato Brasileiro para montar a equipe que representaria o Brasil na Copa do Mundo do ano seguinte.

Entre os atletas, um dos mais indicados pela imprensa paulista era o meia Pita, do São Paulo, que vinha fazendo bonitos gols.

Irritado com a insistência dos repórteres para a escalação do Pita, Evaristo Macedo disse que se fosse para convocar quem faz gol bonito, chamaria o Jacozinho, o jogador do CSA que semanalmente o Globo Esporte destacava nas reportagens do Márcio Canuto.

Márcio Canuto em 1974

Percebendo que a fala do técnico da seleção era uma “deixa” para continuar a promover o ponta azulino, Canuto iniciou uma verdadeira “campanha” na televisão para a convocação do atacante do CSA.

Anos depois, numa entrevista, admitiu que conversou com Jacozinho e o convenceu com o seguinte argumento: “não temos nada a perder”. A campanha não deu certo — era o mais esperado —, mas serviu para colocar o jogador entre os mais conhecidos do país.

Com toda essa projeção, Márcio Canuto entendeu que Jacozinho não poderia ficar de fora do amistoso entre Flamengo e Amigos do Zico na sexta-feira, dia 12 de julho de 1985, no Maracanã. Zico estava voltando da Itália após dois anos na Udinese.

Resultado das articulações do Canuto, dias antes da partida o supervisor do CSA, Sérgio Henrique, telefonou para o comentarista Washington Rodrigues, o Apolinho da Rádio Globo, consultando-o sobre a possibilidade do Jacozinho participar do evento festivo.

O radialista entrou em contato com George Helal, então presidente do Flamengo, e transmitiu a ele o interesse do jogador azulino em participar do amistoso. Argumentou que a presença do atacante ajudaria a levar maior público ao Maracanã. Washington Rodrigues avaliou dias depois que o jogo teve programação errada, em data inoportuna, uma sexta-feira.

Time de futebol da Gazeta nos anos 70, com Márcio Canuto como goleiro

Na terça-feira, dia 9, o Jornal dos Sports do Rio de Janeiro estampou a seguinte manchete: “Festa de Zico pode juntar Jacozinho e Maradona”.

Jacozinho já demostrava que podia roubar a cena e isso não agradou ao Zico, que no final da partida externou esse descontentamento dizendo que houve uma “forçação de barra”. A manchete do Jornal dos Sports do dia 14 de julho de 1985 foi: “Zico vê complô na presença de Jacozinho: Queriam estragar minha festa”.

Zico ficou dois anos sem dar entrevistas à Globo por causa dessa “intromissão”. Avaliava que era uma ação da emissora dos Marinhos contra a TV Manchete, que transmitiu o jogo.

“Não tenho nada contra o Jacozinho, porque ele é tão profissional de futebol como eu. Mas, no jogo não estava prevista a sua presença porque ele realmente não foi convidado por quem estava tratando da festa, ou seja, a Agência Estrutural. Não sei se o objetivo foi esvaziar a festa e fico magoado com isso, se foi essa a intenção”, declarou Zico dias depois em entrevista.

O publicitário Rogério Steinberg, da Agência Estrutural, também não gostou da presença do Jacozinho e chegou a afirmar que o atleta do CSA acabou sendo “meio ridicularizado”.

Não foi ridicularizado. Muito menos pela imprensa que o tratava como uma das estrelas da festa, como fez o Jornal dos Sports no dia anterior ao jogo: “Quanto ao Jacozinho, a terceira grande atração da festa [as outras eram o Zico e o Maradona], o convite deverá ser feito ainda hoje. George Helal admitiu convidar Jacozinho, argumentando vir sendo pressionado pela imprensa”. O Jornal dos Sports divulgou ainda que os principais dirigentes do clube viam no jogador do CSA uma ótima atração para o público”.

Jacozinho foi “na marra” — com se diz no Nordeste — e por isso não recebeu a passagem aérea e nem lhe foi permitido ficar no hotel cinco estrelas com os outros jogadores.

O gol de placa

Minutos antes do jogo, Márcio Canuto estava com Jacozinho nos vestiários e o levou para apresentá-lo ao Maradona, que nunca tinha ouvido falar do Márcio Canuto e nem do Jacozinho.

O craque argentino foi tomado de surpresa quando ouviu o repórter alagoano gritar: “Maradona, esse é o Jacozinho!”. Enquanto Maradona procurava entender o que estava acontecendo, já tinha cumprimentado o jogador do CSA e fotografado ao lado dele.

Jacozinho e Maradona antes do jogo no Maracanã

Já devidamente uniformizado, Jacozinho entrou em campo acompanhando o time dos “Amigos do Zico” e ficou no banco de reservas aguardando ser chamado pelo técnico Telê Santana.

Aos 15 minutos do segundo tempo, sabendo que Zico não tinha gostado muito da “forçação de barra” e que dificilmente o “Rei do CSA” entraria na partida, Márcio Canuto resolveu “forçar a barra” mais um pouco.

Com o repórter cinematográfico ao lado, se aproximou do fosso que separava o campo da torcida e como um maestro passou a gritar e reger a torcida do Flamengo: “Jacozinho, Jacozinho, Jacozinho…”. Com dois minutos Telê Santana chamou o atleta e o colocou no lugar do Falcão.

O resto da história todo mundo sabe: Jacozinho terminou brilhando muito. Até hoje ninguém lembra o resultado da partida e nem quem fez os gols do Flamengo, que venceu o amistoso por 3×1. Mas todos recordam que aos 26 minutos Maradona deu um passe espetacular e Jacozinho deixou Cantarelli no chão com um “arrodeio”, ou “meia lua”, e fez o gol mais importante de sua carreira.

João Malta, Marcio Canuto, Jurandir Costa e Antônio Avelar, a equipe de Esportes da Rádio Gazeta

Para surpresa de todos, milhares de torcedores do Flamengo comemoraram, pela primeira vez na história, um gol contra o seu time. Ao ouvir a vibração da torcida gritando o nome do Jacozinho, Márcio Canuto soube ali mesmo que tinha realizado uma proeza da comunicação esportiva brasileira. Tinha colocado Jacozinho num patamar impensável meses antes.

Sua alegria era tanta que o repórter cinematográfico Márcio Torres, que o acompanhava, não sabia se mostrava a comemoração do Jacozinho ou a do Márcio Canuto, que pulava como se tivesse sido ele o autor do gol.

De certa forma tinha sido. No extracampo ele tinha marcado um gol de placa e estava sendo premiado por ter sido capaz de captar do futebol a sua “alma”, sua face “espetáculo”.

Um comentarista esportivo muito famoso tornou isso público no Jornal do Brasil do domingo, dois dias após a famosa partida do Maracanã.

João Saldanha, avaliando o amistoso, escreveu que os craques do futebol gostam de jogar e citou Maradona e Zico que não quiseram sair do jogo. “Outros tiveram de ser substituídos porque todos deveriam entrar. E no final a feliz presença de Jacozinho, sempre apoiado por seu imenso criador, Márcio Canuto, não foi apenas folclórica. Jacozinho fez gol de craque e outras jogadas muito boas. A torcida ficou só considerando. Pois é, destes jogos não me incomodo de ver todos os dias”.

4 Comments on Márcio Canuto, o agitador das torcidas

  1. Edberto Ticianeli, obrigado pela sua generosidade e por recordar momentos importantes da minha carreira profissional. Você se lembrou de detalhes que minha memória já se recusava a reviver. Queria também ressaltar que foi em Alagoas, na minha terra e com meu povo, que aprendi a ser um jornalista dedicado e obsessivo em fazer o meu trabalho bem feito.

  2. Canuto fantástico jornalista entusiasta, fez mais uma grande história com Jacozinho

  3. carlos costa // 15 de setembro de 2021 em 22:55 //

    quem aparece na foto do gol do Arcanjo e tentando desviar o chute é Evandro, zagueiro em um time de jogadores inesquecíveis, como Aguiar, Lourival, Zé Luiz, Canhoto, Paulo Náilon, entre outros. Acredito que estive nesse e em muitos outros jogos, tanto na Pajuçara quanto no Mutange. Além de Márcio Canuto, lembro-me de outros cronistas e narradores da época, como Sabino Romariz, Jorge Vilar, Jader Cabral. Época do futebol romântico, desprovido das violentas torcidas organizadas e de um profissionalismo torto que hoje leva a maioria dos clubes à ruína financeira

  4. Márcio Canuto

    nota 10

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