Trajetória de uma fotografia
Lêda Braga Villas-Boas
O retrato de Adriana foi produzido pela ação da luz, mediante uma câmara escura, de maneira artesanal, em preto e branco, antes do advento antológico das fotos coloridas. Era só luz e sombra, sombra e luz.
Adriana sentada numa cadeira de palhinha, espaldar alto, empertigada, vestido soturno, chapéu de abas largas enfeitado de flores e plumas. A mão esquerda pousada na coxa e a direita segurando uma sombrinha de cabo comprido arrematada de babadinhos.
Antes da foto Adriana sorriu largo, todavia com o susto do espocar do clic, deixou o sorriso a um terço, misterioso como o da Mona Lisa.
Naquela época, posterior aos daguerreótipo, as poses eram tensas, estáticas, olhar fixo no disparador, que resultava na ilusão de fitarem as pessoas em todos os ângulos.
Há quase meio século estava imobilizada naquela foto, presa numa moldura, protegida por um vidro. Saía apenas quando a arrumadeira o retirava para limpeza, quando se sentia deliciada com a carícia da flanela.
Ocupava lugar de destaque na sala de visitas, dada a sua posição de matriarca da família, admirada e respeitada pelo clã.
Tempo bom aquele! Escutava a conversa das visitas, acompanhava o movimento de entra e sai, enquanto podia ver em todas as direções e se sentia gratificada com os comentários das crianças:
— Olha, o retrato da vovó está espiando para mim! Admirava a decoração da casa, os jarros de flores viçosas, os biscuis arrumados no centro de mármore, os móveis antigos de palhinha e madeira trabalhada em arabescos.
Mas o tempo foi passando e o cordão que sustentava o quadro foi se puindo e um dia rompeu; o quadro foi ao chão e o vidro espatifou-se em mil pedaços.
A família assustada com o barulho apanhou os cacos de vidro, cuidou de amarrar outro cordão e mudou para o corredor, enquanto providenciava outro vidro. A mudança de posição evitava o vexame daquele enfeite castrado, destoando da decoração impecável da sala de visitas.
Iniciou-se o calvário de Adriana. As moscas pousavam no nariz e nas faces, fazendo cócegas com as patas nervosas, os mosquitos ameaçavam picar-lhe o corpo e ela não podia esboçar a menor reação para tangê-los.
Num inverno muito chuvoso, as coisas se complicaram. A água infiltrou-se na parede, o retrato ficou manchado de mofo.
Afinal de contas era uma lembrança da avó, uma remanescente da família tornava-se necessário enviar a um estúdio de fotografia para um retoque.
Acondicionaram a foto num envelope e assim fizeram.
Adriana se arrogou o direito de sentir alguns momentos de felicidade, depois de tanto tempo de clausura, ia dar um passeio, respirar outros ares, ver outros lugares.
No estúdio do fotógrafo, a princípio, ficou jogada numa estante, dentro do envelope, à espera do grande dia da decisão do homem.
Em seguida, ele a retirou do envelope, mirou de perto, afastou mais para longe, avaliou os estragos e colocou sobre uma mesa em completo desalinho. Havia retratos de todos os tipos e formatos e até coloridos. Conheceu um bebê gorduchinho sorriso de incisivos, um velho três por quatro de chapéu coco e bigode de ouriço, uma jovem de biquini, rosto exageradamente pintado, mulheres nuas mostrando suas vergonhas.
Ficou ali esquecida durante algum tempo até o fotógrafo se interessar por ela. Ele tomou um lápis apropriado, começou a retocar os olhos, a boca, o nariz, o rosto e continuou pelo resto do corpo. A ponta do lápis arranhava, mas dava uma deliciosa sensação de posse, ele a possuía, dava-lhe atenção, esforçava-se para reconstruir a beleza original perdida no mofo do tempo.
Terminado o trabalho, voltou ao envelope e foi devolvida ao remetente.
Mudaram-na de lugar para evitar futuros contratempos. Desta vez ficou pendurada na parede onde ficava a escada, caminho obrigatório para o primeiro andar. O ângulo de visão ficou resumido aos degraus e corrimão e às pessoas que passavam e lhe lançavam olhares enviesados.
As gerações da família foram se sucedendo e ela cada vez mais esquecida e perdida na memória dos novos, o abismo do tempo se alargando cada vez mais rápido.
Era tempo de se fazer uma grande reforma na casa, a decoração e os móveis deviam ser trocados, a família estava imbuída do sentimento de modernidade, as novas gerações já não veneravam os mais velhos, ninguém reconhecia a mulher esquisita completamente fora dos padrões vigentes e se perguntavam quem era Adriana:
— Quem será esta mulher de vestido comprido, sombrinha e chapéu enfeitado de flores e plumas?
Como não souberam responder, o quadro foi jogado num quartinho de objetos imprestáveis, depois de tantos serviços prestados. Estava definitivamente relegada ao anonimato.
Ela queria dizer: “Doem-me a um museu, vendam-me a um antiquário ou colecionador de retratos antigos, sou uma peça de valor” — e sentiu falta de um par de asas para voar e da capacidade de se expressar, imobilizada como estava.
Na arrumação final do quartinho, foi relegada à lata do lixo.
O lixeiro viu o quadro, achou que valia alguns mil-réis, retirou a moldura e sacudiu o retrato no triturador do caminhão.
***
Lêda Braga Villas-Boas
Nasceu em 16 de janeiro de 1929 na Praça da Faculdade em Maceió. Fez o curso primário no Grupo Escolar Bráulio Cavalcanti (em Pão de Açúcar) e no Grupo Escolar Gabino Besouro (em Penedo), Os 1° e 2° graus realizou no Instituto de Educação em Maceió.
Seu conto “O papa-anjo” recebeu em 1984 o Prêmio Guimarães Passos de Conto, outorgado pela Academia Alagoana de Letras. Teve trabalhos literários também publicados na Gazeta de Alagoas, no periódico “A Ponte” e no jornal do Clube dos Funcionários do IAPI. Publicou o livro de contos “Rosto de Domingo“.
Participou, com A Casa dos Enrugados e Trajetória de uma Fotografia, da Coletânea Caeté do Conto Alagoano, p. 46-50 e 51- 53, respectivamente.
Faleceu em Maceió no dia 18 de maio de 2020.
Dona Leda foi minha colega no nunca esquecido IAPI pessoa de fino trato colega de categoria elevada. DEUS que a acolha com amor e carinho.