Maceió, cidade alegre
Jorge de Lima
Antes de Maceió ser capital do Estado, a cidade de Alagoas teve esse privilégio. Alagoas – capital Alagoas; Alagoas – capital Maceió; os nomes das duas capitais já vinham com a história das cidades que brotam d’água. Maceió – “o que tapa o alagadiço” ou simplesmente Alagoas com a sua “Paranan-guera” – o que foi mar, ou com a sua “Para-i-guera” – ou “Paraíba antigo”, tudo ali conta as origens, o seu mergulho de milénios, até emergir, libertar-se do mar, ser lagoa, coroa, terra firme: Maceió enfim ou “o que tapa o alagadiço”.
Os nomes mesmo dos arrabaldes, das ruas, dos sítios são nomes pitorescos molhados d’água: Cambona, Poço, Levada, Aterro de Jaraguá, Aterro do Cemitério, Olhos D’Água, Bebedouro. De sorte que a mudança da capital para Maceió já representa mesmo, etimologicamente, um progresso: a terra aflorou, tapou-se o alagadiço, surgiu Maceió.
O homem que pegou em armas para que a mudança não se operasse não concorreu, porém, com o holandês a fim de conquistar solo, aumentar a cidade, consolidar o seu terreno de treme-treme. O mangue é que anonimamente, milênios e milênios, mandou raízes, distribuiu sementes, conquistou terra para a sua pátria das Alagoas.
A terra continua ainda misturada à água, cortada de riachos, de cambonas, rodeada de lagoas, por isso é uma terra que me agrada porque tem a sedução das terras das ilhas distantes, das erromangos com seus coqueirais [Eromango é uma ilha do Pacífico que compõe a nação de Vanuatu], com a sua ventania constante e seu mar furioso. É a terra mais bela do Brasil, pobrinha com seus ricos lençóis d’água subterrâneos, com seus prováveis lençóis de petróleo.
Maceió possui excelente posição topográfica, com seus três planos que a dividem em três bairros característicos: Maceió, Jaraguá e Jacutinga ou Farol.
Do Jacutinga divisam-se Maceió e Jaraguá e lá longe os canais e a lagoa longínqua. Canoas veleiras cortam as águas, o descendente de caetés apanha o sururu no fundo da lagoa. O farol, mal chega a noite, lambe aquelas terras alagadas com uma faixa imensa branca e vermelha. Maceió vai recolher-se, vai dormir. A cidade dorme cedo, não tem hábitos noturnos.
Lá está a igreja do Rosário, lá está a Matriz, lá está a igreja dos Martírios que Roy Nash, protestante, achou tão bonita que a botou em seu livro errado e bom “The Conquest of Brazil”.
Nas terras de Satuba – “terras de caranguejo”, o Mundaú transbordou, as águas subiram nos trilhos da Great Western: o trem vem atrasado, vem de longe, de “Cinco Pontas”, vem cansado.
A história da Great Western, a zona dos quatros Estados que ela atravessa, o homem que nela viaja, os dirigentes ingleses, o caboclo, o cossaco (trabalhador da linha), o senhor de Engenho vestido de guarda-pó, o usineiro “nouveau-riche” arrebentado e quase sempre ridículo, o judeu cobrando a prestação de gare em gare, os banguês das margens devorados pelas usinas e a Great Western canalizando todas aquelas economias para o estrangeiro, tudo isso dava um formidável ensaio, um romance extraordinário que nenhum nordestino quis ainda escrever.
Porém, Maceió é isso, somente? Alagados, mangues, caetés, Great Western? Não. Maceió tem fábricas, tem operários, tem petróleo, tem latifúndios, tem politiqueiros, tem substância para uma grande história, para uma grande tragédia, para uma grande glória, para a Paz, para a Paz.
As condições mesológicas desfavoráveis poderiam modificar o homem daquelas plagas, nivelá-lo ao plano da terra sem elevações, quase ao nível do mar. Não conseguiram, entretanto: o maceioense é sagaz, vivo e trabalhador, como todo nordestino. De uma jogralidade inexcedível, nas suas festas de São João, de Natal, na Levada e em Bebedouro; no Carnaval, em qualquer festejo, enfim, ele se apresenta com a velha alma de caeté amante dos folguedos, engraçadíssimo.
Mesmo às margens das lagoas, na zona do sururu, o homem não é só o empalemado roedor de tijolo, triste e vencido pela lama. O coco (dança tradicional da região), o toré, o reisado, a chegança, têm mestres extraordinários nas ilhas, nos canais e nas margens das grandes lagoas.
Uma vez apreciei um toré organizado por mestre João Pedro, que nunca me saiu da memória, desde a infância querida que os anos não trazem mais. Esse toré entrou por Bebedouro, com os seus reis preto e caboclo. Tinha uma extraordinária rainha índia, com uma coroa de espelhinhos e manto de flanela vermelha, trazia óculos escuros e bigodes e costeletas grudados com goma de farinha do Reino.
Era lindíssima a Rainha. Os reis prendiam moleques, entregava depois os reféns a troco de níqueis. No fim, os pretos são sempre vencidos pelos caboclos. Ainda hoje essa folgança tradicional termina sempre com a vitória dos nativos que, afinal, nos tempos de hoje, são todos eles, tão misturadas andam as três raças naquelas regiões.
A jogralidade é característica tão forte do maceioense que, aos tempos da Revolução de 30, ainda as forças de Paraíba demoravam na capital e já o povo promovia passeatas, com dichotes e grossa pandega, dando, imediatamente, ao acontecimento, um aspecto de farra carnavalesca.
Pouco dias depois, o guerreiro Juarez Távora, discursando para um grupo de curiosos, em frente ao palácio dos Martírios, foi aparteado por um ouvinte: — General, aqui continua tudo na mesma mamãezada!
Achei a expressão — “mamãezada” — de uma felicidade de interpretação extraordinária. “Mamãezada” — coisa entre mamãe e filho, briga sem importância, fechar os olhos, passar esponja, está tudo acabado”! Para que inimizade entre os caboclos da mesma tribo?
A forte humanidade, o poderoso vínculo de solidariedade e de amor que assinalam o caráter daquela gente, fazem-na a mais doce, a mais acolhedora, a mais amiga nação do Nordeste.
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Transcrito da revista Carioca, nº 18, 22 de fevereiro de 1936. http://memoria.bn.br/DocReader/830259/1081
Reproduzido a partir do Blog do Etevaldo. http://blogdoetevaldo.blogspot.com/2021/06/maceio-cidade-alegre_13.html?m=0.
Maravilhoso texto; belas paisagens; lindas fotografias.
Obrigada, Ticianeli, por matérias tão bonitas.
Parabéns, Ticianeli.
Aos pouco você vai nos educando sobre um passado não tão longínquo, que o tempo destruiu. Bela foto. Abraço forte.
Texto muito bom!