Graciliano visto por Graciliano
Publicado na Revista Leitura (RJ) de dezembro de 1942
Nasci em 27 de outubro de 1892, em Quebrangulo, Alagoas, donde saí com dois anos. Meu pai, Sebastião Ramos, negociante miúdo, casado com a filha dum criador de gado, ouviu os conselhos de minha avó, comprou uma fazenda em Buique, Pernambuco, e levou para lá os filhos, a mulher e os cacarecos. Ali a seca matou o gado — seu Sebastião abriu uma loja na vila, talvez em 95 ou 96. Da fazenda conservo a lembrança de Amaro vaqueiro e de José Baía.
Na vila conheci André Laerte, cabo José da Luz, Rosenda lavadeira, padre João Ignácio, Felipe Benicio, Theotoninho Sabiá e família, seu Batista, dona Maricas, minha professora, mulher de seu Antonio Justino, personagens que utilizei muitos anos depois.
Aprendi a carta de ABC em casa, aguentando pancada. O primeiro livro, na escola, foi lido em uma semana; mas no segundo encrenquei: diversas viagens à fazenda de um avô interromperam o trabalho, e logo no começo do volume antipático a história besta dum Miguelzinho que recebia lições com os passarinhos fechou-me, por algum tempo, o caminho das letras.
Meu avô dormia numa cama de couro cru, e em redor da trempe de pedras, na cozinha, a preta Vitória mexia-se, preparando a comida, acocorada. Dois currais, o chiqueiro das cabras, meninos e cachorros numerosos, soltos no pátio, cobras em quantidade.
Nesse meio e na vila passei os meus primeiros anos. Depois seu Sebastião aprumou-se e em 99 foi viver em Viçosa, Alagoas, onde tinha parentes. Aí entrei no terceiro livro e percorri várias escolas, sem proveito. Como levava uma vida bastante chata, habituei-me a ler romances.
Os indivíduos que me conduziram a esse vício foram o Tabelião Jeronimo Barreto e o agente do correio Mario Venancio, grande admirador de Coelho Neto e também literato, autor dum conto que principiava assim: “Jerusalém, a deicida, dormia sossegadamente à luz pálida das estrelas. Sobre as colinas pairava uma tênue neblina, que era como o hálito da grande cidade adormecida”. Um conto bonito, que elogiei demais, embora intimamente preferisse o de Paulo Kock e o de Júlio Verne. Desembestei para a literatura.
No colégio de Maceió, onde estive pouco tempo, fui um aluno medíocre. Voltei para Viçosa, fiz sonetos e conheci Paulo Honório que em um dos meus livros aparece com outro nome.
Aos dezoito anos fui com a minha gente, morar em Palmeira dos Índios. Fiz algumas viagens a Buique, revi parentes do lado materno, todos em decadência. Em começo de 1914 enjoado da loja de fazendas de meu pai, vim para o Rio, onde me empreguei como foca de revisão. Nunca passei disso.
Em fim de 1915, embrenhei-me de novo em Palmeira dos Índios. Fiz-me negociante, casei-me, ganhei algum dinheiro, que depois perdi, enviuvei, tornei a casar, enchi-me de filhos, fui eleito prefeito e enviei dois relatórios ao governador.
Lendo um desses relatórios, Schimidt imaginou que eu tinha algum romance inédito e quis lançá-lo. Realmente o romance existia, um desastre. Foi arranjado em 1926 e apareceu em 1933. Em princípio de 1930 larguei a prefeitura e dias depois fui convidado para diretor da imprensa oficial.
Demiti-me em 1931. No começo de 1932 escrevi os primeiros capítulos de S. Bernardo, que terminei quando saí do hospital. As recordações do hospital estão em dois contos publicados ultimamente, um em Buenos Aires, outro aqui.
Em janeiro de 1933 nomearam-me diretor da instrução pública de Alagoas — disparate administrativo que nenhuma revolução poderia justificar. Em março de 1936, no dia em que me afastavam desse cargo, entreguei à datilografa as últimas páginas do Angústia, que saiu em agosto do mesmo ano, se não estou enganado, e foi bem recebido, não pelo que vale, mas porque me tornei de algum modo conhecido, infelizmente.
Mudei-me para o Rio, ou antes, mudaram-me para o Rio, onde existo, agora. Aqui fiz o meu último livro, história mesquinha — um casal vagabundo, uma cachorra e dois meninos. Certamente não ficarei na cidade grande. Preciso sair. Apesar de não gostar de viagens, sempre vivi de arribada, como um cigano.
Projetos não tenho. Estou no fim da vida se é que a isso se pode dar o nome de vida. Instrução quase nenhuma. José Lins do Rego tem razão quando afirma que a minha cultura, moderada, foi obtida em almanaques.
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N. R. – O último livro a que Graciliano Ramos se refere — chamando-o de “história mesquinha — um casal vagabundo, uma cachorra e dois meninos” é “VIDAS SECAS” — um grande romance consagrado pela crítica brasileira. Depois dele, além de artigos e contos espalhados pela imprensa do país, Graciliano fez, de parceria com Aníbal Machado, Rachel de Queiroz, Jorge Amado e José Lins do Rego, o romance “Brandão entre o mar e o amor“.
Exemplo de simplicidade de um grande escritor que nos orgulha.
Na minha opinião, junto com Machado de Assis, um dos maiores escritores da humanidade. Como alagoano, me orgulho de ser conterrâneo desse “monstro” da literatura. Parabéns à querida Terra dos Marechais, tão sofrida, mas berço de grandes vultos brasileiros!!!