Cinzas de um carnaval que não houve

Escrito num momento de tristeza em 2021, quando não houve carnaval por causa da pandemia

Carnaval da Rua do Comércio em 1952

Edberto Ticianeli

O vento, que percorria a Rua do Comércio, vinha lá da Praia da Avenida e era muito frio para uma noite de fevereiro. Estranhamente frio. No Centro de Maceió, apenas o lixo mais leve, que ali se acumulara durante o dia, tentava acompanhar os invisíveis caminhos criados pela brisa marinha.

De repente, fez-se calmaria. Silêncio absoluto. Ali perto, o relógio da Catedral movimentava seus ponteiros para o último impulso antes de marcar a meia-noite daquela terça-feira de carnaval. E quando isso aconteceu, o tempo parou.

Nas proximidades do antigo Relógio Central, as luzes serenavam, como se fossem antigos lampiões a gás, deixando perceber apenas um vulto disforme vagando pela rua deserta.

Era o Espírito dos Carnavais Passados, sempre envolto numa nuvem multicolorida. Fora despertado pelo silêncio de uma cidade sem folia e temia que, pela primeira vez em sua secular existência, não tivesse lembrança alguma para guardar.

Carnaval na Rua do Comércio em 1958

Rodopiou pela Rua do Comércio. Parecia procurar algo perdido. Parou na esquina do Beco do Moeda e ali aguardou o toque dos clarins do Cavaleiro dos Montes, sempre liderado pelo Rás Gonguila. Foi um pouco mais à frente na esperança de encontrar o palanque da esquina da Av. Moreira Lima, onde Edécio Lopes estaria transmitindo mais um concurso de passo para a Rádio Difusora.

Nada. Ninguém. Somente o silêncio.

Desembocou na Praça dos Martírios, esperando que as animadas Ciganinhas do Major Bonifácio invadissem a praça, vindo de Bebedouro. Cansou de esperar. Encontrou ali somente o Marechal Floriano, o impávido e eterno guardião do poder.

Major Bonifácio Silveira e suas Ciganinhas

Pensou em visitar a Ponta Grossa, mas de longe percebeu que a poeira de ouro não subia pelos ares, sinalizando que não tinha frevo na praça que recebeu o nome do passista campeão, o Moleque Namorador.

Resolveu então ficar na imediações do antigo Cinearte, onde veria a chegada do corso vindo da Praia da Avenida, palco do concorrido Banho de Mar à Fantasia. Os carros sem capotas não apareceram, da mesma forma que não ouviu o som da orquestra no baile do Clube Fênix. De lá também não se escutava a voz do Paulo Sá cantando o Sururu da Nega.

Da Rua do Livramento, esperava ouvir o estrondo da famosa bateria da Escola de Samba Circulistas, chegando ao Centro da cidade, após uma longa caminhada pela ruas Santo Antônio e 16 de Setembro, lá na Ponta Grossa. Silêncio…

Escola de Samba Circulistas no carnaval de 1953, em Maceió

Estava neste devaneio, que somente os Espíritos dos Carnavais Passados conseguem, quando o relógio da Catedral voltou a funcionar, decretando a Quarta-Feira de Cinzas.

Triste e abatido por não ter nada para lembrar, o guardião das nossas melhores memórias festivas começou a se desvanecer em um pó multicolorido. Em seu último delírio, viu que um sorridente Rei Momo se aproximou e o fitou carinhosamente. Piscou um olho e cantou:

“Eu vejo a barra do dia surgindo, pedindo pra gente cantar.
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar…”.

Depois saiu dançando em direção ao Bar do Chopp, como se fosse um gringo no samba. Parecia o Setton Neto.

E tudo se transformou em cinzas

12 Comments on Cinzas de um carnaval que não houve

  1. Maravilhoso! 👏👏👏

  2. Fátima Almeida // 17 de fevereiro de 2021 em 15:31 //

    Que texto lindo, Ticianelli. Mesmo não tendo vivido esses tempos gloriosos dos carnavais no centro de Maceió, onde só cheguei aos 14 anos de idade, viajei, cantei, bailei e sonhei nesse texto.

  3. CARLOS ROBERTO // 17 de fevereiro de 2021 em 16:03 //

    Arretado, genial, antológico, emocionante esse texto do Ticianeli

  4. Excelente! 👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻

  5. Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros // 17 de fevereiro de 2021 em 17:41 //

    Poético texto, que ressalta as fotografias da Maceió que o tempo e os homens de cada tempo destruíram, enterrando agora com o fim de Bebedouro da Fábrica Bom Parto e dos passistas do bloco do “Major do povo” na voz de Luiz Gonzaga: “Bonifácio, Major do povo, velhinho novo, a comandar, Carapeba, por onde passa……….
    Parabéns Ticianeli, cronista cada dia melhor!

  6. Janaina Régia Pinto // 18 de fevereiro de 2021 em 22:07 //

    Amo as histórias antigas de Alagoas me emocionei quando falou no Calaveiro dos Montes minha vó hj com 90 anos sempre fala desse bloco e o arrasta veia muito bom viajar no tempo tá de parabéns essa equipe q ñ deixa nossa história morrer.

  7. André José Soares Silva // 19 de fevereiro de 2021 em 05:25 //

    Perfeito 👏👏👏

  8. Parabéns amigo Ticianelli pelo excelente texto. Por alguns instantes me transportei para a década de 60, quando levado pelo meu saudoso pai, acompanhei alguns momentos desse carnaval que infelizmente não volta mais. Parabéns pela luta pra manter viva na memória de todos o nosso saudoso carnaval. Saudades que a gente sente!

  9. Caramba,…. Eu já sou apaixonado por Maceió, desde minha juventude, quando a conheci no ano 1990,….(em lua de mel)….. ()Agora que descobri este site com história antiga,… Tô me arrebentando de amor por Maceió. Estou querendo morar deves aí. Parabéns ao pessoal que criou este site. Caso queiram enviar outras coisas boas assim,…eis meu e-mail: miguelwilliam2@hotmail.com…. Alguém aí de 60 anos, quer fazer amizade comigo ???? Para trocar coisas boas de Maceió comigo ???

  10. Nostálgico!

  11. Poema da Quarta-feira de Cinzas, que beleza de texto. Um presente para os anais dos carnavais de Maceió. Sabia que vc é um excelente historiador, desconhecia sua alma de poeta meu amigo Edberto.

  12. Grande Rasputin, neste vc se superou. Cheguei por estas bandas em 1963 e ainda viví carnavais que aconteciam nestes sítios – Avenida da Paz; Rua do Comércio e Ponta Grossa, Maceió, nestes tempos, tinha 250.000 a 300.000 habitantes, e tinha mais cara de cidade. As referências eram mais presentes, vez por outra, encontrava-mos estas figuras referenciais. A Maceió de hoje, com 1.000.00 de habitantes já não é espaço para este tipo de convivência. Com todas as restrições, só o Jaraguá Folia reproduz, parcialmente, o clima dos Carnavais e da cidade pretérita.

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