Bráulio Cavalcante X Tenente Brayner: a pena e a espada
Etevaldo Amorim
(O texto foi resumido para este site. O original pode ser lido aqui).
Os acontecimentos de março de 1912, que precipitaram a queda do governo Euclides Malta, foram marcados por uma sucessão de episódios violentos que culminaram com aquele desfecho trágico que colocou Alagoas no noticiário nacional especialmente pelas mortes de Bráulio Cavalcante e do Tenente Brayner.
Até se encontrarem na fatídica tarde de 10 de março diante do Palácio Floriano Peixoto, suas vidas tinham percorrido caminhos inteiramente diversos.
De um lado, o jovem tribuno, recém-formado pela Faculdade de Direito do Recife, de oratória vibrante e envolvente, ligado às artes e à literatura.
De outra parte, um experimentado militar, com vasta folha de serviços no Exército, homem forjado na dura disciplina dos quartéis, de temperamento forte e intransigente.
Quando Bráulio nasceu em Pão de Açúcar, Alagoas, no dia 14 de março de 1887, o paraibano João das Neves Lima Brayner, filho da Dona Marianna das Neves Lima Brayner, já havia começado carreira nas fileiras do Exército. Iniciara-se como cadete quando tinha apenas 14 anos.
Brayner, durante a Revolta de 1893 (a chamada Revolta da Armada), esteve ao lado de Floriano Peixoto, ocupando posto de confiança na torpedeira “Gustavo Sampaio” no ataque a uma das unidades rebeladas, o encouraçado Aquidabã.
Voltou a prestar serviços ao Governo Legal durante o Movimento de 14 de novembro, no governo Rodrigues Alves, atuando com Ajudante de Ordens do General Júlio Barbosa. Em abril de 1894, o então cadete 1º Sargento, servindo no 27º Batalhão de Infantaria, na Paraíba, foi comissionado no posto de Alferes.
Enquanto isso, na pequena e pacata cidade do Sertão Sanfranciscano, o novel poeta, filho do Capitão José Venustiniano Cavalcante e de D. Maria Olympia, experimentava seu primeiro soneto.
Em setembro de 1895, Brayner servia no 40º Batalhão, no Pará, depois de ter solicitado trancamento de matrícula na Escola Prática do Exército. Essa corporação militar, depois de participar da 4ª Expedição a Canudos, é transferida para o Recife. Nessa ocasião, retorna para o 27º BI.
Já em 1896, como tenente-coronel, foi nomeado para o cargo de Chefe do Corpo de Segurança da Paraíba (comandante do Corpo de Polícia), no governo do presidente Dr. Antônio Alfredo da Gama e Mello.
Integrando ainda o 27º Batalhão, João Brayner embarca para a Bahia em março de 1897, a fim de participar da Campanha de Canudos. A sua Corporação, associada ao 14º BI, congregava 515 homens que, sob o comando do general Arthur Oscar, se juntaria a outras Divisões do Exército com o propósito de liquidar os seguidores de Antônio Conselheiro.
Em janeiro de 1898, foi transferido do 27º BI para o 20º mas, em março de 1899, já estava no 38º, sediado em Vila Velha, Espírito Santo. Em maio de 1900, já se encontrava no 15º, donde foi transferido para o 39º, por estar acometido de Beribéri. Em agosto de 1902, já no 30º Batalhão, no Paraná, atuava como Adido ao 39º, sendo nomeado para destacar na Colônia Militar de Chapecó, onde foi comandante.
Ainda no Paraná, foi Quartel Mestre do 1º Batalhão de Engenharia e Almoxarife da Colônia do Chopim. Em setembro de 1904, já era merecedor de Medalha de Bronze, por contar com mais de dez anos de serviço.
Nessa época, ingressa como diácono na Loja Maçônica Fraternidade Paranaense. Em fevereiro de 1906, foi transferido do 7º Batalhão para o 22º, em permuta com o colega Pedro Innocêncio de Oliveira. Em outubro de 1908, por indicação de Comissão presidida pelo General Câmara, foi promovido a 1º Tenente por antiguidade.
Sua vida pregressa no Exército, a julgar pelas notícias veiculadas na imprensa da época, revela atos de autoritarismo e truculência.
Enquanto o tenente fazia valer a força da sua espada, o jovem estudante fazia correr sobre o papel a sua pena inspirada e prolífica. Em 25 de novembro de 1906, pelas páginas do jornal pão-de-açucarense A VOZ DO SERTÃO, Bráulio, então com 19 anos, decantava em versos a sua terra natal.
Em 1910, já como estudante de Direito no Recife, Bráulio não deixava de cuidar das coisas da sua terra. Durante as férias, participava ativamente dos eventos culturais e de outros que faziam parte do cotidiano dos seus conterrâneos. Nessas ocasiões, exercitava seus dotes de oratória.
Com o Grupo Dramático J. M. Goulart de Andrade, esteve em Santana do Ipanema, em apresentações das peças “O prêmio da virtude” e “O Financeiro”, com muito aplauso e grande frequência. (A IDÉIA, 06/02/1910).
Bráulio demonstrava verdadeira adoração por Alagoas, por Pão de Açúcar, pela família, pelos amigos. Seus versos eram carregados de romantismo e até de uma certa nostalgia.
A Campanha
Inicialmente, o Partido Democrata inclinava-se pela candidatura de Clementino do Monte, alagoano de Penedo, advogado há muitos anos estabelecido no Rio de Janeiro, homem probo e digno, tido como ideal para arrostar a oligarquia Malta.
Já iniciada a movimentação em torno do seu nome, com os famosos “telegramas de apoio” e a formação de comitês pró-candidatura, o Dr. Clementino ponderou que não seria vantajoso “deixar o conforto da sua bela casa, os fartos proventos do seu escritório, abandonar todas as suas comodidades para se meter no Palácio de Maceió e ter de aturar todas as maçadas inerentes à posição”, segundo análise de um colunista do jornal A NOITE, de 1º de dezembro de 1911.
Foi aí que, para se livrar do “pepino”, sugeriu ao Presidente que indicasse o Coronel. Com efeito, em novembro de 1911, o partido oposicionista anunciava as candidaturas do Coronel Clodoaldo da Fonseca e do Dr. Fernandes Lima para Governador e Vice-Governador, respectivamente.
Iniciava-se 1912. Bráulio, que se formara ano anterior, cumprindo os exames finais com distinção em todas as cadeiras e recebendo o grau de bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais no dia 9 de dezembro, engajara-se na campanha desde o início.
Seu pai, o Capitão José Venustiniano Cavalcante já participava da Liga Pró-Clodoaldo da Fonseca em Pão de Açúcar, fundada em 17 de dezembro de 1911 com a participação de Manoel Francisco Pereira e Luiz Machado de Andrade. Suas atitudes e suas palavras demonstravam que fazia com paixão e com desprendimento, próprios daqueles que defendem um ideal.
O Coronel Clodoaldo da Fonseca, indicado pelo Partido Democrata, tinha também o apoio do Partido Republicano Conservador- PRC, que chegou a cogitar o nome do General Olympio da Fonseca para o governo do Estado.
Mesmo no início de 1912, o próprio governador Euclides Malta encaminhava a seus partidários a seguinte chapa para as eleições daquele ano: “Governador: Coronel Clodoaldo da Fonseca; Vice-Governador: em branco; Senador: Raymundo de Miranda; Deputados: Natalício Camboim, Eusébio de Andrade, Demócrito Gracindo e Capitão de Corveta Aristides Mascarenhas”.
Já às vésperas do pleito, Euclides recomenda o nome do Coronel Clodoaldo, indicando, porém, o nome do Tenente Victorino Fabiano para Vice-Governador. A sua briga particular era com Fernandes Lima. Exemplo disso é o telegrama passado ao Cel. Ulisses Luna, de Água Branca: “Estou de acordo com a candidatura do Coronel Clodoaldo para o cargo de Governador e do Tenente Victorino Fabiano para o de Vice, por me ter procurado o Tenente Pinto Monteiro, com quem me comprometi”.
Entretanto, a não ser pelo parentesco com o Presidente da República – Clodoaldo era primo e cunhado de Hermes da Fonseca, jamais tinha posto os pés em Alagoas; “nem mesmo de passagem”, segundo nota do jornal A Noite, de 13 de outubro de 1911.
No dia 18 de fevereiro de 1912, o Tenente Brayner, já como 1º Tenente de Infantaria, pouco antes das nove horas da manhã, embarcou no Rio de Janeiro a bordo do paquete nacional “Alagoas”, com destino a Maceió. Vinha na condição de Assistente do General Olympio de Carvalho Fonseca, que assumiria interinamente o cargo de Inspetor da 6ª Região Militar.
No armazém nº 12, do Cais do Porto, ao toque de três bandas militares e na presença de cerca de vinte e cinco autoridades, entre elas o Cel. Luiz Barbedo – representando o Presidente da República – e o Senador Lauro Sodré, partiu para a que seria a sua última viagem.
Sua vinda para Alagoas se deu sem que tivesse solicitado. Tendo estado doente, partira para Lambary, Estado de Minas Gerais, para onde pretendia mudar-se. Passou apenas quinze dias. Foi então que, atendendo ao convite do General Olympio Fonseca, aceitou a Comissão que lhe oferecia o superior, dizendo este que a viagem talvez lhe propiciasse melhoria para a sua saúde. Com efeito, poucos dias depois de sua chegada, achando-se melhor, escreveu à família dizendo que estava ansioso para voltar porque aqui “só se fazia política”. Se não pudesse regressar logo, o faria junto com o General, que só estaria em Alagoas até as eleições.
O cenário dos Martírios
Bráulio marchava com os manifestantes pelas ruas de Maceió. Livramento, Praça Deodoro, Rua do Macena, Augusta, Comércio e, por fim, a Praça dos Martírios. Próximo à estátua de Floriano Peixoto, três soldados do 8º Pelotão intimaram-nos nos seguintes termos:
— Não queremos vaias nem falação.
Bráulio explicou que não se tratava de vaia, mas de um comício, pedindo a presença do Oficial de Serviço, a fim de com ele se entender. O Tenente Brayner, Secretário do Interior, recém-nomeado por Euclides Malta, que acabara de jantar no Hotel Nova-Cintra, logo ali na Rua do Sol, dirigiu-se aos manifestantes em termos ásperos, dizendo não consentir que se realizasse o comício e que, daquele dia em diante, a autoridade seria respeitada.
Osman Loureiro descreveu em verso esse confronto naquele final de tarde. Em síntese, são estas as informações do poema Epopéia de Sangue:
Durante a manifestação na Praça Floriano Peixoto do domingo, dia 10 de março de 1912, o Tenente Brayner se aproxima do grupo e proíbe os “meetings”. Bráulio Cavalcante contesta a ordem e surge uma discussão entre eles. O Tenente Brayner reafirma a ordem e ameaça “varrer à bala” a manifestação, afirmando que a Constituição era ele.
Houve uma ordem de prisão contra Bráulio e teve início um tumulto. Temendo que ele fosse preso armado, um amigo se precipitou a tirar-lhe do bolso da calça uma pistola Comblain. Um policial, armado de pistola Browing, disparou-a contra Bráulio, mas não o atingiu. Alguém desviou o braço do atirador. A esse primeiro disparo seguiram-se outros, partindo da Guarda do Palácio e da residência particular do Dr. Euclides Malta. Ao final dos tiros, Bráulio estaca caído e ferido mortalmente. Seu corpo, inicialmente colocado no saguão do Palácio, foi depois transportado para a casa do seu irmão Pedro.
Brayner, que também foi ferido no tiroteio, faleceu na terça-feira, dia 12 de março de 1912, às 11 horas da noite e sepultado às 16:00 horas do dia 13. Teria sido o seu assassino o subinspetor da Guarda Civil, José Moreira. Assistiram aos seus últimos momentos apenas duas praças do Exército.
O Partido Democrata publicou manifesto convidando o povo a comparecer ao enterro e responsabilizando Euclides Malta pela morte do Tenente. Foi encontrada no bolso dele uma lista com 16 nomes de adversários, entre eles alguns dos próceres do Partido.
Com 42 anos de idade, o tenente morreu deixando a mulher, Anna Ferreira Camboim, com nove filhos: Antônio, com 18 anos; Corintha, com 16; Floriano, de 15; Ary, com 13; Jurandyr, com 10; Corina, com 8; Ruy, com 4; Carolina, com 3; e Coralina, com 2.
Notícia do jornal A NOITE informa que a família, residindo numa dependência da Fortaleza da Conceição, ficava “na maior pobreza”. Ou, por outra, ficaria não fosse a pensão que tiveram por merecer e que receberam por muitos anos.
Um de seus filhos seguiu também a carreira militar. O terceiro deles, o marechal Floriano de Lima Brayner, fez brilhante carreira no Exército e chegou a ser Chefe do Estado Maior da FEB – Força Expedicionária Brasileira na 2ª Guerra Mundial, sob o comando do Marechal Mascarenhas de Morais.
Funeral
No dia 11, uma multidão de cerca de 8.000 pessoas acompanhou Bráulio a sua última morada.
Dando conta da votação apurada até então, o Vice-Governador eleito, Fernandes Lima, transmitiu telegrama, no dia 15 de março, ao Coronel Clodoaldo da Fonseca nos seguintes termos: “Euclydes embarcará a 17. O partido emprega todos os meios possíveis para que seja garantida a sua vida de qualquer desacato. Não queremos manchar nossa vitória. – Fernandes Lima”
Fernandes Lima, que hoje dá nome a uma das principais avenidas da capital alagoana, preocupava-se em “não manchar” a vitória. Bráulio perdera a vida. Entregara-se por inteiro àquela causa, sem medir consequências e, de peito aberto, arrostara os maiores perigos.
Um sobrinho-neto dele, o meu prezado amigo Homero Cavalcante, ator de reconhecido talento, forneceu-me material bibliográfico e fotografias, além de externar o sentimento que dominou a sua família desde aquele trágico acontecimento.
REFERÊNCIAS
A IDÉIA. Pão de Açúcar, 23 Jan., 01 Maio, 19 Jun. 1910.
A REPÚBLICA, Curitiba, 19 Jun, 1902. Disponível em: www.memoria.bn.br. Acesso em: 12 Jun, 1912.
A UNIÃO, Paraíba, 14 de fevereiro de 1896. Disponível em: Acesso em: 21 Jun, 2012.
CORREIO DA MANHÃ, Rio de Janeiro. Disponível em: Acesso em: 25 Jun, 2012.
CORREIO PAULISTANO, São Paulo, 13 Mar, 1912. Disponível em: Acesso em: 25 Jun, 2012. DIÁRIO OFICIAL, Rio de Janeiro. Disponível em: . Acesso em: 9 Mar, 2012.
MARTINS, Henriques (Org.). Lista Geral dos bacharéis e doutores que têm obtido o respectivo grau na Faculdade de Direito do Recife: desde sua fundação em Olinda, no ano de 1828, até o ano de 1931. 2. ed. Recife: Typ. Diário da Manhã, 1931.
O PAIZ, Rio de Janeiro, 9 Fev, 1912 Disponível em: www.memoria.bn.br. Acesso em: 8 Mar, 2012.
RAFAEL, Ulisses Neves. Xangô Rezado Baixo: Um Estudo da Perseguição aos Terreiros de Alagoas em 1912. Rio de Janeiro, Jun 2004.
VOZ DO SERTÃO. Pão de Açúcar, 9 Dez.1906.
Muito bom reler a nossa história . Equivocadamente li uma passagem em que Bráulio Cavalcante foi Morto por tiro disparado do Palácio dos Martírios pelo famoso Tenente Brayner . Aproveito para perguntar : o Coromel Brayner , Comandante do 4. RAM transferido de SP na 2a Guerra para Maceió seria parente do Tenente ?
Vinícius Maia Nobre, o texto afirma que o Tenente Brayner deixou nove filhos. O Terceiro por nome Floriano Brayner que lutou na Segunda Guerra Mundial.
A aranha
A Braulio Cavalcante :
Diedi parimente retta ad un bel ragno che tappezzava
una delle mie pareti.
Silvio Pellico – Le mie prigioni
Em dias de verão, na minha alcova cheia
Da luz do sol, que, lado a lado, a doira e banha,
Minha antiga inquilina, uma peluda aranha,
Entre a parede e o teto o seu vulto passeia.
É uma amiga pontual. Sempre arrepiada e feia,
Ergue e balança no ar a sua forma estranha,
Sobe, desce e no fio as pernas emaranha,
Enquanto vai tecendo a complicada teia.
Não lhe tenho aversão, não me aborreço dela,
Pois vive egoisticamente a preparar a tela
Que treme semelhando uma diáfana rede.
Mesmo um facto anormal dá-se às vezes comigo:
Fico inquieto em não vendo o velho insecto amigo
Sempre no seu lugar – o canto da parede.
Pernambuco Soeiro Lobato
– Soeiro Lobato foi pseudônimo do jovem poeta Graciliano Ramos. Soneto publicado no Correio de Maceió, 01-10-1911, conforme registro de M. M. de SANT’ANA, Graciliano Ramos. Achegas biobibliográficas, p. 83. Transcrito em Fernando A. CRISTÓVÃO, Graciliano Ramos, poeta, p. 79. Em Marili RAMOS, Graciliano Ramos, p. 27, foi reproduzido sem indicação da dedicatória, da epígrafe e do local. Publicado também em O Malho, nº 482, 09-12-1911, edição 482, tela 37:
– Bráulio Cavalcante foi assassinado aos 25 anos, a 10-03-1912 (cinco meses após a publicação de A aranha).
– Na publicação de O Malho, a epígrafe, acima corrigida, saiu estropiada. Ver: Silvio PELLICO, Le mie prigioni, p. 79, Cap. XXVI. A tradução do trecho pode ser: “Dei igualmente atenção a uma bela aranha que revestia uma de minhas paredes” (agradeço os esclarecimentos de Edlena da Silva PINHEIRO: o interessante na relação é que Pellico se inquieta com a ausência da aranha, quando é encaminhado por uns dias para outra cela).
Temos muitos alagoanos ilustres que pouco sabemos deles. Se faz necessário grande esforço para colocar seus feitos e talentos para conhecimentos dos cidadãos de nossa terra. Estou encantado em conhecer a vida do tribuno, poeta, ativista e artista Bráulio Cavalcante