Lendas e tradições cristãs no Nordeste

Publicado no Diário de Notícias de 4 de novembro de 1945

Igreja de N. S dos Prazeres em Belo Monte na antiga Ilha do Ouro, na Barra do Panema

Manuel Diégues Júnior

Não faltam lendas nem tradições que cerquem desse colorido ingênuo, que só na alma do povo se pode encontrar, a vida das igrejas do Nordeste. Ora de igrejas ilustres, matrizes respeitáveis, sedes de paróquias, quando não catedrais venerandas como a Sé de Olinda; ora de igrejinhas brancas e humildes, pequenas casas de orações, às vezes perdidas no meio de uma floresta bonita, hoje, é certo, coisa rara na paisagem nordestina. Quase sempre, igrejinhas brancas cercadas pelo verde dos canaviais: as capelas de engenhos de açúcar.

Estas lendas ou estas tradições enchem de beleza a vida religiosa da gente do Nordeste, e dão à prática religiosa como que mais misticismo, mais popularidade, mais encanto, mais doçura mesmo.

Igreja do Senhor do Bomfim em Taperaguá, Marechal Deodoro

Elas enriquecem não apenas o folclore da região, tão intensamente acentuado pelas marcas cristãs; enriquecem também, e muito, a história religiosa do Nordeste, dando-lhe contornos mais vivos e mais brilhantes, fixando-lhe um colorido popular, tão dentro do povo vivem mais essas lendas e tradições do que mesmo as contrições religiosas, os deveres cristãos.

Tanto na Paraíba como em Pernambuco ou em Alagoas os ciclos de lendas ligadas à vida religiosa da região são enriquecidos de numerosas narrativas. Aliás, em quase todos os ciclos de lendas nordestinas figura uma contribuição de caráter religioso.

No ciclo dos gênios local ou patrocínio aos lugares encontram-se as lendas do corpo santo e a do Santo Antônio Meirim; no dos milagres de salvação figuram as lendas das igrejas de N. S. dos Remédios ou de Coqueiro Seco, ambas em Alagoas; no ciclo da proteção do céu aos conquistadores estão dois exemplos na lenda da Sé de Olinda e da capela de N. S. dos Guararapes.

E assim em todo o lendário nordestino se encontra a contribuição religiosa, do misticismo religioso das populações do Nordeste.

Um dos ciclos mais ricos em lendas é o que narra mudanças de local de santos. A imagem é encontrada em determinado lugar, às vezes num pilar, outra no meio das árvores, e então conduzida respeitosamente para uma igreja já existente.

Igreja N. S. do Pilar antes da construção da Praça

No dia seguinte a imagem está desaparecida; fugiu da igreja. Procura-se por toda parte e vai ser encontrada no mesmo local onde primitivamente fora achada. E assim, duas, três vezes, até que o povo constrói no lugar do achamento uma capela para a imagem.

Na Paraíba é conhecida esta lenda, conforme conta João Alfredo de Freitas, no seu minúsculo, porém, precioso livrinho “Lendas e superstições do Norte do Brasil”; não diz o local, nem qual o santo do milagre.

A narrativa, entretanto, é a mesma existente em Pernambuco ou em Alagoas para poetizar a ereção de igrejas no local onde havia sido descoberta primitivamente a imagem do santo ou da santa.

A lenda existe também em Pernambuco, e aí está ligada a construção da igreja de Santo Antônio do Morro, no engenho “Velho”, de João Paes Barreto. Narra-o o mesmo João Alfredo de Freitas, e descreve-a em suas minúcias o folclorista Pereira da Costa, no seu substancioso “Folclore Pernambucano”. A tradição em Pernambuco liga-se à imagem de Santo Antônio, e junto à capela construída surgiu uma fonte de água milagrosa.

Além desta circunstância, há ainda outra ligada à lenda da capelinha de Santo Antônio do Morro; a de que o santo não permite nenhuma construção vizinha à sua igreja. Nem mesmo a velhinha do engenho que tinha a seu cargo a limpeza e arrumação da capela, pode levantar uma casinha para, mais de perto, servir melhor ao santo.

Outros que tentaram também construir casa na vizinhança, viram seus sonhos irem por terra. São informações fornecidas por Pereira da Costa.

Em Alagoas numerosas são as lendas e tradições ligadas à religião. Umas igrejas construídas em virtude de voto ou promessa: a de Nossa Senhora dos Remédios, narrada por Otávio Brandão, em “Canais e Lagoas”; a da capela do Bom Despacho, em Camaragibe, contada por Fernandes Lima, nas “Efemérides de Camaragibe”; a da igreja de Coqueiro Seco, conservada na tradição popular, revivescida sempre nas narrativas de antigos moradores que, por sua vez, já a ouviram de seus antepassados mais longínquos.

Estas lendas correspondem as que existem em outros Estados do Nordeste, também ligadas à promessa ou voto do construtor.

Outro ciclo — o da proteção do céu aos conquistadores — encontra seu tipo clássico na velha Sé de Olinda, cuja narrativa figura não apenas nos livros de folclore, mas ainda em todos os compêndios de história, e, às vezes, de literatura também.

No mesmo ciclo se inclui a construção da capela de N. S. dos Guararapes, no célebre monte onde os luso-brasileiros derrotaram definitivamente os invasores holandeses.

Outras lendas dizem respeito à construção de capelas em virtude de achado de santo ou santa que não quis mudar de lugar. Esta tradição é encontrada em Portugal, conforme revela Leite de Vasconcelos; em outros pontos do país ela também aparece.

É interessante observar que quase sempre a lenda está ligada a uma Nossa Senhora do Pilar, talvez pela circunstância de ser encontrada a imagem num pilar. No Nordeste envolve também a existência de capelas do Senhor Bom Jesus.

Igreja de N. S. Bom Jesus em Matriz de Camaragibe

Em Alagoas, pelo menos cinco lendas são ligadas ao ciclo da mudança de local. Uma delas, talvez a mais antiga, é a do Senhor Bom Jesus de Camaragibe. Encontrada a imagem junto a um pé de timbó foi levada para a igreja Velha; daí no dia seguinte desapareceu, e foi, de novo, achada no primitivo lugar. Outra fuga, outro achado, e então os devotos resolveram erigir uma capela para o santo junto ao pé de timbó onde a imagem aparecera.

E ela foi erigida, dando começo ao povoado, mais tarde e hoje vila de Matriz de Camaragibe, primitiva sede de uma das mais antigas paróquias da região, hoje transferida para a cidade do Passo, quando também a freguesia perdeu o padroado do Bom Jesus para adotar o de Nossa Senhora da Conceição.

As outras são as lendas ligadas à igreja de Nossa Senhora do Pilar, na cidade do Pilar, hoje chamada Manguaba, à igreja do Bom Jesus de Taperaguá, povoado do atual município de Marechal Deodoro, e uma das povoações mais antigas das Alagoas, à de Nossa Senhora da Piedade em Anadia, que fez mudar o padroado, até então entregue a São João — lenda essa que Nicodemos Jobim conta pormenorizadamente no seu valioso volume “História de Anadia” — e, finalmente, à de Nossa Senhora dos Prazeres, na ilha do mesmo nome, no rio São Francisco.

Desta última, cuja capela é de princípios do século XVII, pois se acredita ter sido construída em 1694, conta a história o velho cronista alagoano Pedro Paulino da Fonseca em um MS existente no arquivo do Instituto Histórico de Alagoas.

É tradição que a imagem fora encontrada no alto do monte, no centro da ilha; e aí erigiram a capela, pois a imagem de N. S. dos Prazeres fugia da igreja no continente para onde fora levada, reaparecendo no seu lugar predileto, uma magnifica elevação de onde se descortina quase todo o baixo São Francisco.

A lenda da imagem de Nossa Senhora dos Prazeres está descrita numa poesia popular de Alagoas que Pedro Paulino recolheu. Compõem-na cinco décimas e dezesseis quadras. Os versos descrevem a lenda, a transladação da imagem e sua fuga, e seu reaparecimento, a construção da igrejinha no alto do monte da ilha dos Prazeres.

4 Comments on Lendas e tradições cristãs no Nordeste

  1. Lucia Castro // 24 de maio de 2019 em 19:37 //

    Foi de suma importância a divulgação da História de Igrejas, cidades e povoados, para o enriquecimento do conhecimento da nossa história e cultura. Parabéns!

  2. Girlene Monteiro // 25 de maio de 2019 em 14:41 //

    Saber da história de terra que nascemos reforça a nossa identidade.

    Para maior clareza sobre a Ilha de Nossa Senhora dos Prazeres, apenas ratificar que, antes da construção da Igreja, a ilha chama-se “Ilha do Ouro” e sempre foi ligada à Comunidade de Barra do Ipanema.
    No frontispício da Igreja consta a data de sua construção “1694”, portanto séc. XVII.

  3. Luana Carla // 2 de setembro de 2020 em 18:49 //

    Amei

  4. Lituane carla gomes da silva // 17 de outubro de 2020 em 12:46 //

    As lendas são parte importante das tradições folclóricas, e cada região brasileira possui histórias ou versão diferentes.

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