Folclore alagoano e a transição Reisado X Guerreiro
Publicado originalmente no Boletim Alagoano de Folclore, 2001
Pedro Teixeira de Vasconcelos
Uma das coisas mais significativas do nosso folclore é a transição porque passou o nosso Reisado para se transformar em Guerreiro.
Eu posso afirmar que vi essa transição.
Menino ainda assisti diversas apresentações do Reisado. A primeira foi de um que veio de Quebrangulo c dançou na Casa Grande da Medina. Todas as figuras eram do sexo masculino. Guardo até agora algumas jornadas que ficaram na minha memória:
“De quem será aquela casa caiada,
Parece a alvorada quando vem rompendo,
Quem mora nela é Dona Rosalva,
E a estrela d’alva quando vem nascendo.”
Outra:
“Quando chega o mês de festa,
Eu ouço o trovão roncar,
Os homens pegam a semente,
Vão para a roça a plantar.”
Outra:
Quando chega o mês de festa,
Primeiro ronca o trovão,
O relâmpago abre e fecha,
Só parece a zelação.”
Uns escoivarando o mato,
Outros plantando a semente,
Se o ano for favorável,
Dá legume de repente.”
Outra:
“Nós somos soldados,
De dois “bataião”,
Costa com costa,
Joeios no chão.”
Mais uma:
“Dona Lira que um dia,
Um amor que no peito eu sentia,
Por ver o filho embarcar,
Para guerriar de Natal à Bahia.”
Havia os “entremeios“, assim chamados porque surgiam durante a apresentação do folguedo. Dançando somente dois Mateus, não existia ainda o Palhaço que antes era a pessoa que “tirava” as figuras do entremeio: o Rei, a Rainha, o Jaraguá ou Zabelê, o Lobisomem, o Capitão de Campo, a Catirina e o Doutor para curar o boi.
Começava a “fonção” com as peças de rua, da sede até a Casa Grande onde iam se apresentar. Se houvesse uma igreja ou capela, o Reisado parava na calçada da mesma e cantava o “Divino“. Depois dirigia-se à Casa Grande. Todos entoavam as peças de “abrição de porta“. Aberta a porta, entravam precedidos dos Mateus e iniciavam a dança com belíssimas nuances de coreografia.
As primeiras jornadas eram estas:
“Quando eu entro nesta nobre sala
E com prazer e alegria,
Para saudar o dono da casa,
Com toda sua “famia.”
Outra:
“Quando nesta casa entrei,
De longe avistei a donzela com um véu,
A mulher é a imagem do homem,
A princesa, a rainha do céu.”
Seguiam-se as jornadas de salão, começavam a aparecer os “entremeios” e chegavam às “chamadas de guerra” para terminar tudo com as peças de despedidas:
“Dono da casa
Adeus que eu me vou,
Até para o ano,
Se vivo eu for.”
Assim eram os Reisados do meu tempo.
As vestes eram vermelhas, usavam saiotes, meias brancas compridas, muito galão dourado, peitoral de espelhos, calçavam o “pão criolo“, uma espécie de tênis da época, muitas fitas nos chapéus, que ostentavam inúmeros espelhos e cercados de flores diversas, feitas com folhas de “lata de anjo“, uma espécie de lata bastante delicada, semelhante ao nosso papel laminado de hoje, porém muito mais resistente.
As figuras principais como o Mestre, o Contra-Mestre, o Rei e os dois Embaixadores traziam espadas, enquanto o restante usava maracás.
Os Mateus tinham pandeiros e levavam a chibata feita de tranças de cebola ou de alho, corriam atrás dos meninos, cantavam e diziam piadas:
“Valei-me Nossa Senhora,
Minha santa senhorinha,
Quando eu entro numa sala,
Meu sentido é na cozinha.”
Paulatinamente, o Reisado foi se modificando. Podemos chamar esta modificação de miscigenação. Foram incluindo no folguedo figuras de outras modalidades de danças. Primeiramente vieram dois meninos que traziam bandeirinhas e se postavam na frente, executando os difíceis passos da complicada coreografia; no final da guerra funcionavam como apaziguadores, cruzando as bandeirinhas com a espada do mestre, cantando:
“Tenha mão, meu secretário,
Deixemos de pelejar
A bandeira brasileira
Nós havemos de honrar.”
Nesta época, mais ou menos em 1922, foram surgindo outros personagens no Reisado: o Capitão General, da Chegança; a Borboleta, do Pastoril; o Índio Peri, do auto das Caboclinhas; a Lira, também das Caboclinhas; a Rainha, figura de diversos folguedos; a Sereia, elemento bastante discutido até hoje.
A introdução de figuras femininas surgiu mais ou menos em 1925.
Lembro que assisti à exibição de um Reisado, vindo do então Engenho Ingazeira, comandado pelo compadre Sinfrônio Vilela e ensaiado pelos irmãos Góis. Esse Reisado fez época. Além das bandeirinhas, havia duas meninas que ficavam na frente, uma era a Estrela de Ouro e a outra era a Tapuia que cantavam umas peças que me ficaram na lembrança:
“A coruja, à meia noite,
Dá um passeio na rua,
Asa Branca bateu asas,
Que bela noite de lua.”
Essa figura denominada Tapuia vestia uma roupa coberta de penas e usava um cocar.
Podemos afirmar que foram os Reisados de Boa Sorte e da Ingazeira que puseram moças e meninas nos seus cordões. Já havia assim começado a transição. Formados na “Faculdade da Boa Sorte”, já com diversas modificações. Maria Odilon brilhou, consagrando-se a maior mestra da região. Honorato, José Moraes, Mestre Libânio, Mestre Rosalvo, os Góis, Mestre Antônio Ferreira e Manoel Nique, assim como muitos outros cujos nomes fogem da memória.
Em 1954, por ocasião do Congresso de Folclore em São Paulo, Viçosa mandou seu Reisado, graças ao esforço de Théo Brandão e José Aloísio Vilela. Chefiando a turma, foi o apaixonado amante do folclore Vivaldo Vasconcelos Vilela, verdadeiro sucesso na capital bandeirante. Delírio fora do comum. E foi num abrir e fechar de olhos que o Guerreiro estava formado. Peças foram criadas para as figuras do folguedo que era catalogado como Auto dos Guerreiros.
Quis misturar-se um pouco com o “Baiana” quanto as jornadas. Apareceram repentistas e improvisadores que criavam peças na hora, desprezando as antigas e tradicionais. Poucos conservavam a tradição e o Guerreiro foi se modificando a ponto de, hoje em dia, estar dividido em duas categorias: Guerreiro Tradicional e Guerreiro Abaianado.
Mas os mestres vão rareando. Ninguém quer mais “brincar” Guerreiro nem outro qualquer folguedo, como a Chegança. O processo avançado e os meios de comunicação multiplicando-se, trazem consigo uma infinidade de coisas novas, coisas modernas. Danças diversas, programas de auditório e a coqueluche atual que é o rock.
Tudo isso vai concorrendo para o extermínio do nosso valioso acervo folclórico.
As nossas tradições não podem e nem devem morrer. Precisamos, nós e os outros, sustentar a barra e não permitir que todas essas maravilhosas manifestações sucumbam.
Participei por diversas vezes dos jogos escolares brasileiros, os célebres JEBs, como chefe da turma do folclore. Todos os Estados da Federação traziam suas danças, suas tradições e seus costumes. Era um espetáculo fora do comum. Infelizmente, suprimiram essa modalidade cultural do programa atual dos JEBs. Numa das ocasiões em Brasília, assistindo à apresentação do então território do Amapá, o “Mar-abaixo” surpreendeu-me nessa dança, com uma parte semelhante à morte da Lira, do nosso Guerreiro:
“Vamos matar nossa Lira,
Antes que ela venha ao porto,
Não cabe duas rainhas,
Nessa aldeia de caboto.”
Intrigou-me bastante esse fato.
A distância entre Amapá e Alagoas é bem acentuada. Talvez lá, ninguém conheça o nosso Guerreiro, como nós não conhecemos o Mar-Abaixo.
Por que então esta “peça” está nos dois folguedos? Quem copiou um do outro?
É um tema para os folcloristas dos dois Estados.
Quanto é deslumbrante a apresentação de um Guerreiro!
A beleza das vestes, de cores variadas, o esplendor dos chapéus, das coroas, dos diademas, cheios de espelhos, de contas de aljofre, de fitas, de areia brilhante, trazendo formatos exóticos, copiando o feitio de igrejas e mesquitas orientais. E a melodia dos cantos, a dinâmica da difícil coreografia, o gingado do corpo, a agilidade das figuras na parte da Guerra, do índio Peri, da Sereia, da Lira e dos “Caboclinhos da Lira”.
Estas coisas da nossa tradição cultural não podem morrer, não devem desaparecer do nosso meio-ambiente.
Precisamos incentivar os remanescentes, ajudá-los para que não desanimem, continuem em frente e conservem os nossos folguedos e nossas danças com toda sua beleza, porém com toda sua autenticidade.
Que venha o progresso, que venha o adiantamento, mas que eles não empanem a beleza do nosso folclore e não abalem as estruturas da nossa cultura popular.
Dizem os entendidos que um povo sem tradições é um povo sem história, é um povo sem vida. É verdade!
Precisamos reviver o nosso passado, não esquecer a nossa história, para que sejamos um povo que tem vida.
Ai de nós se banirmos nossas tradições e nossos costumes!
Nunca! Nunca! Nunca!
Saudade de meu estimado padrinho Pedro Teixeira.
Dancei Guerreiro, Reisado e outras danças com o maior mito do Folclore Alagoano
Sou de Chã Preta
Professor Pedro Teixeira