A foto e a tragédia do padre João Mitchell

Fotografia de M. Phillipsen da família Mitchell em Maceió no início do século XX

Com a informação que era a imagem de uma família maceioense do final do século XIX ou início do XX, capturada pelas lentes de M. Phillipsen, publicamos uma foto nos grupos História de Alagoas e Maceió Antigo no Facebook informando que pertencia ao acervo da Cúria Metropolitana.

Não demorou para que o jornalista João Victor Lemos e a professora Irineia Franco, membros dos grupos, indicarem que a foto era da família do padre João Mitchell, com passagem pela Igreja dos Martírios.

Fotografia de M. Phillipsen da família Mitchell em Maceió no início do século XX

Como João Victor havia informado que ele era um padre estrangeiro, iniciamos uma rápida pesquisa para confirmar. O que descobrimos publicamos abaixo.

Família Mitchell

A informação mais remota sobre esta família foi fornecida pelo historiador Davi Rodrigues de Sena, que encontrou o seguinte registro no livro de casamentos mais antigo de Santa Luzia do Norte:

Aos trinta de maio de mil oitocentos e trinta, de minha licença na capela do Engenho Oficina, corridos os proclamas sem se descobrir impedimento algum, em presença do Reverendo José Jerônimo de Oliveira presente às testemunhas, o capitão Gregório Correia da Motta casado e o alferes José Casado de Lima solteiro, além de outras pessoas, se receberam em matrimônio por palavras de presente: Thomas Humphery Mitchel, da Nação Britânica, hoje cristão, conforme a lei Católica Romana, filho de Frederico Mitchel e Margarida Mitchel todos da mesma Nação, com Dona Maria Joaquina, filha legítima do capitão José Gregório Correia da Motta e Dona Joaquina Vitória, naturais e moradores nesta Freguesia de Santa Luzia do Norte e logo lhes dei as bênçãos nupciais no que para constar, mandei fazer este assento que assinei.
Padre: Manoel Soares de Albuquerque.

Davi Rodrigues acrescentou ainda que sua tia Virgínia de Hollanda Pedrosa, que faleceu no Rio de Janeiro, foi casada com João Thomas Mitchel, bisneto de Thomas Humphery Mitchel. Ele indica o casamento acima como a origem desta família em Alagoas.

Liberato Mitchell

Sobre o padre João de Menezes Mitchell, descobrimos que nasceu em 1887 e era um dos muitos filhos de Liberato Mitchell e Tereza de Mendonça Mitchell. A pesquisa conseguiu identificar os nomes dos seguintes irmãos de João Mitchell: Jeffry Mitchell, Tertuliano Mitchell, Galdino Mitchell, Antônio Mitchell, Zulmira Mitchell, Maria Aristhéa Mitchell e Etelvina Mitchell.

Liberato Mitchell, o patriarca da família, tinha pelo menos um irmão de nome José Leite de Menezes (Gutenberg de 21 de março de 1905), revelando a possibilidade do seu sobrenome Mitchell não indicar origem na família Mitchell identificada à cima.

Essa suspeita também se funda no registro no Almanak Administrativo da Província das Alagoas de 1877. Lá se encontra um intérprete de nome Liberato Leite de Menezes, que atendia na Rua da Alfândega, nº 80, atual Rua Sá e Albuquerque.

No Jornal de Alagoas de 3 de maio de 1877, uma nota informa que o intérprete Liberato Leite de Menezes mudou sua residência do Hotel Salvador, onde tinha seu escritório, para outro endereço, passando a atender nas dependências do despachante Ignácio Valeriano de Mendonça, em Jaraguá, no nº 52.

A primeira citação do seu nome como Liberato Mitchell foi encontrada por esta pesquisa n’O Orbe de 22 de agosto de 1879. O intérprete comunicava que havia adquirido de Salvador Leite Vidigal os estabelecimentos Ship Chandler e Hotel, no dia 1º daquele mês.

O Orbe de 12 de dezembro de 1884 se refere a Liberato Leite de Menezes Mitchell ao relacioná-lo como um dos multados por ter faltado ao júri.

Não se conseguiu determinar o nível de escolaridade de Liberato, mas era uma pessoa com razoáveis conhecimentos, como pode se deduzir por sua capacidade intelectual. Por exemplo: em setembro de 1879, ao divulgar o Hotel Universal na Rua da Alfandega, 71, em Jaraguá, fez constar do anúncio no jornal uma das atrações da firma: “Fala-se inglês, francês e alemão”.

Anúncio do Hotel Universal publicado no Jornal do Recife de 3 de setembro de 1879

Na década seguinte ele foi citado como empregado, em Jaraguá, da casa comercial John H. Boxwel e Cia.

No início da década de 1890, Liberato surge como subdelegado do distrito de Jaraguá e Capitão da 2ª Companhia do Batalhão da Reserva das freguesias de Maceió e Jaraguá.

Em 1892 era conselheiro municipal da capital, o equivalente aos atuais vereadores. Tinha sido eleito em agosto de 1892 com 681 votos.

Três anos após era vice-presidente da Sociedade Filarmônica Santa Cruz, em Jaraguá e membro da mesa receptora de votos naquele distrito (8ª Seção).

Em 1896 foi citado como Major da Guarda Nacional e sua profissão era “intérprete juramentado”. Nas eleições de 1º de novembro daquele mesmo ano foi candidato a deputado estadual, sem sucesso.

No ano seguinte era “inspetor escolar de Jaraguá” e realizou o recenseamento escolar do distrito. Também apareceu como secretário da Associação Comercial, eleito no dia 18 de agosto. O presidente era Francisco de Amorim Leão e o vice Félix Bandeira Júnior.

Ainda em 1897, foi mencionado nos jornais como membro da confraria do Santíssimo Sacramento e Corretor, sendo autorizado a vender 130 ações da Companhia Progresso Alagoano e de outras empresas.

Já como coronel da Guarda Nacional, em 1899, foi escolhido como síndico da junta sindical dos Corretores com escritório estabelecido “defronte da Alfandega”.

Rua Sá e Albuquerque em 1930

No início do século XX era o presidente do Conselho Supremo da Sociedade Humanitária Jaraguaense e em 1905 foi eleito pelo Partido Republicano para a 8ª Legislatura como deputado estadual, com mandato até 1906.

Nesse período escrevia diariamente para os jornais informando cotações de câmbio, algodão e açúcar, além dos quantitativos exportados pelas empresas alagoanas.

Ao concluir o mandato de deputado estadual, assumiu, em agosto de 1906, como 2º Comissário de Polícia da Capital, com atuação em Jaraguá.

No ano seguinte era um dos Comandantes Superiores da Guarda Nacional em Alagoas e vice provedor da Irmandade dos Martírios.

A última notícia encontrada sobre ele foi publicada em maio de 1914. Informava que tinha inaugurado em Recife uma filial da sociedade Mutua de Construções A Edificadora. Era o diretor-presidente. Ficava na Rua das Cruzes, 21.

João Mitchell

Seminário de Maceió logo após a sua inauguração em 1904

Também não se tem informações sobre sua educação escolar, mas sabe-se que em 1905, com 20 anos de idade, iniciou seus estudos no Seminário de Maceió, no prédio inaugurado no ano anterior no Alto do Jacutinga.

João Mitchel foi ordenado no dia 15 de novembro de 1908 e “cantou” sua primeira missa no dia 22 de novembro na Igreja dos Martírios. Era o subdiácono.

Menos de um ano depois, em setembro de 1909, foi nomeado coadjutor da freguesia de Viçosa. Entretanto, em junho de 1910, já era citado como o “vigário de Jaraguá”.

Em 1914, em Jaraguá, o vigário era o padre Fernando Lyra, que dividia a paróquia com padre João Mitchell, morador da Rua Conselheiro Saraiva, 41, atual Av. da Paz.

Até o final da década de 1920 surgem nos jornais citações sobre o trabalho paroquial do padre João Mitchell em Jaraguá.

Faleceu em Salvador, na Bahia, onde procurara tratamento, em 7 de maio de 1935, aos 48 anos de idade.

Tragédia

A grande surpresa na pesquisa foi encontrar informações sobre o drama vivido por este padre quando ainda era uma criança e perambulava por Jaraguá, onde residia com seus pais, irmãos e irmãs.

Talvez agora se compreenda a razão dos rostos tristes na foto identificados por muitos dos participantes do grupo.

Vamos deixar o Jornal do Recife de 15 de setembro de 1898 descrever o que aconteceu.

Alagoas – Refere A Tribuna de 4 do corrente:

“Ontem, há 1 hora da tarde, no Trapiche Jaraguá, o estimado moço, Joaquim Rodrigues Vieira, filho do nosso amigo major João Nunes, caiu fulminado por um tiro de revólver.

Este fato, tremenda desgraça, que a mão da fatalidade arremessou no seio de duas famílias, foi todo casual, pois deu-se como passamos a narrar.

O menor de 13 anos, João Mitchell, filho do nosso prestimoso amigo, coronel Liberato Mitchell, que com Joaquim Rodrigues mantinha a mais estreita amizade foi àquela hora ter com este no Trapiche de Jaraguá onde encontrando-o esteve a brincar, como de costume.

Igreja Nossa Senhora Mãe do Povo em Jaraguá, onde João Mitchell permaneceu por muitos anos

Infelizmente, porém, Joaquim Rodrigues puxa do bolso um revólver e, fazendo alvo em uma janela que deita para o fundo do trapiche, dispara duas vezes a arma; e porque falhasse uma das capsulas, deu-a ao menor Mitchell que assistia àquele exercício, e retirou-se.

A inconsciente criança, imitando o seu amigo, tentou detonar a cápsula que havia falhado, e apontou para a janela manejando a arma.

O revólver disparou e o projétil, varando a janela, empregou-se na região da nuca do inditoso moço que naquela ocasião atravessava sem ser visto pelo menor Mitchell”.

Como se percebe, uma tragédia que deve ter acompanhado o padre João Mitchell pelo resto de sua vida. O seu desempenho, sempre elogiado como padre, revela a sua capacidade de superação.

Essa é a história da foto das pessoas tristes, como foi denominada por alguns leitores do grupo História de Alagoas no Facebook.

7 Comments on A foto e a tragédia do padre João Mitchell

  1. davi rodrigues de sena // 1 de agosto de 2018 em 19:17 //

    Meu caro Ticianeli, me permita acrescentar o seguinte: em pesquisa realizada no livro de casamento mais antigo de Santa Luzia do Norte, encontrei o seguinte registro.
    Aos trinta de maio de mil oitocentos e trinta, de minha licença na capela do Engenho Oficina, corridos os proclamas sem se descobrir impedimento algum, em presença do Reverendo José Jerônimo de Oliveira presente às testemunhas, o capitão Gregório Correia da Motta casado e o alferes José Casado de Lima solteiro, além de outras pessoas, se receberam em matrimônio por palavras de presente: Thomas Humphery Mitchel, da Nação Britânica, hoje cristão, conforme a lei Católica Romana, filho de Frederico Mitchel e Margarida Mitchel todos da mesma Nação, com Dona Maria Joaquina, filha legítima do capitão José Gregório Correia da Motta e Dona Joaquina Vitória, naturais e moradores nesta Freguesia de Santa Luzia do Norte e logo lhes dei as bênçãos núpcias no que para constar, mandei fazer este assento que assinei.
    Padre: Manoel Soares de Albuquerque.
    nota: minha tia, Virgínia de Hollanda Pedrosa, já falecida no Rio de Janeiro, foi casada com João Thomas Mitchel, bisneto do inglês acima citado. Portanto, temos ai a origem dos Mitchel em Alagoas.
    Um abraço.

  2. Davi, são preciosas suas informações. Vou utilizá-las para ampliar o texto sobre o padre João Mitchell.

  3. Thaisa Pedrosa // 23 de julho de 2019 em 17:26 //

    Boa tarde, preciso entrar em contato com o Historiador Davi Rodrigues de Sena seria possível um e-mail? Ele fez a árvore genealógica da minha família e gostaria conversar com ele.

  4. Renato Mitchell // 15 de janeiro de 2021 em 23:10 //

    Boa noite, caro Ticianeli, qual o documento que foi utilizado , para vincular o Liberato Mitchell ao suposto irmão José Leite de Menezes?

  5. Bom dia, Renato Mitchell. O anúncio da morte de José Leite de Menezes publicado no jornal Gutenberg de 21 de março de 1905. Enviei o recorte por email.

  6. Rafael Mitchell // 29 de abril de 2021 em 19:20 //

    Boa noite, Ticianeli. Sou trineto de Liberato e gostaria de entrar em contato para verificar se existem mais informações sobre a sua origem.
    Obrigado e um grande abraço!

  7. Viviane Mitchell // 14 de julho de 2023 em 10:23 //

    Não canso de ler… sou bisneta de Tertuliano Mitchell

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