Programa Especial: uma noite de domingo em Maceió nos anos 40
Um domingo em Maceió nos anos 40
Aloísio Costa Melo
Domingo. Programa especial que se repetia sempre. Depois de oito horas de trabalho pesado e exaustivo e do almoço no meio da tarde, sono reparador até às seis. Um demorado banho de cuia, loção barata, vaselina no cabelo. Terno engomado, gravata, sapatos brancos. Lépido, aquele enorme bem-estar embutido lá por dentro, lá se dirigia eu, passos lentos, ao Ponto Certo, bar e restaurante de muitas portas, na esquina da Praça Deodoro.
Meu dia incomum. No salão separado por um biombo de madeira ocupava uma das mezinhas forradas com impecável toalha branca. Começava minha noite de glórias. Comia fora. Fugia da gorogoba de minha mãe, do picadinho de carne com feijão e arroz ou do sururu ensopado. Mas não jantava.
Zuza, o garçom, já conhecia a rotina. Entrava na cozinha e em pouco tempo estava colocando na mesa o café e o cuscuz redondo, amarelinho, quente, molhado com o leite de coco.
Uma beleza! Contemplava dali o movimento da praça, as pessoas e os pares que passeavam. Olho no relógio para controlar o horário do bonde. Chegava a hora, pagava a conta, atravessava a rua. Apanhava o veículo com dificuldade. Sempre cheio, passageiros pendurados nos estribos. Gente elegante, bem vestida, em demanda da Pajuçara. Muito chique as “soirées” do Cine Rex, o cinema mais novo e o melhor da cidade. Nova mania do pessoal moço da cidade.
O bonde esvaziava na porta do cinema. Bilheteria cheia, sala de espera atulhada. Casais passeando pela calçada. Desfile de elegantes. Vendedores de pipocas, bombons e amendoim. Também roletes de cana-caiana.
Sessão das oito, a mais concorrida. Casa lotada, com gente em pé junto às paredes. Casais de namorados em cochichos e agarramentos. Filmes coloridos, artistas famosos, muito romance e muita aventura.
Eu, para compensar a miopia, lá na frente, nas primeiras filas, quase sempre cercado de pivetes barulhentos. E a mágica na tela. “As Quatro Penas Brancas”, “Capitão Blood”, “E o Vento Levou”, “Pássaro Azul”, “Ladrão de Bagdad”, “Gunga Din”… Errol Flynn, Clark Gable, Shirley Temple.
Na volta, os comentários sobre os filmes:
— Menina, você viu como o Clark Gable estava lindo?
— Não gostei da Merle Oberon: muito pedante!
No Relógio Oficial eu deixava o bonde. Movimento nas calçadas, muita gente passeando. O Bilhar do Comércio muito ativo, ambiente esfumaçado, barulheira de jogadores. O Bar Elegante borbulhando de frequentadores alegres na cerveja, discutindo política, falando da vida alheia. Pessoal jovem tomando as mesinhas brancas da Sorveteria Primavera.
Quase sempre só, eu ficava por ali zanzando, olhando as vitrines e as pessoas na rua. Nada consumia além de um eventual sorvete de coco. O dinheiro resumido não permitia maiores extravagâncias.
Com o passar do tempo diminuía o movimento e eu me dirigia para casa, descendo pela rua do Livramento. Uma espiada pela rua da Lama, subindo, às vezes, a escada de madeira da pensão da Dina. Outras vezes descia direto até a rua do Capim, confluência com a rua Santa Maria, zona do baixo meretrício, um tanto perigosa, cheia de bares, bancas de jogos, jogadores e malandros de todos os tipos.
Eu permanecia algum tempo, andando de lá para cá, mãos nos bolsos, até que me decidia a entrar numa das casas abertas e escolhia uma mulher qualquer. Mais aliviado, porém pouco satisfeito, voltava para casa. As mulheres apressadas, quase mecânicas, falando pouco, preocupadas só em apresentar o jarro d’água e a toalhinha de limpeza. O dinheiro deixado sobre a mesinha de cabeceira. Quase sempre duas moedas de prata.
*Publicado originalmente no livro “Se não me falha a memória”, Maceió: SERGASA, 1992. O título original é “Programa Especial”.
Eu nasci em 1941, portanto nao sei falar nada daquela epoca, quando vim participar dessas orgias ja foi por volta dos anos 60. Os locais mencionados eu os conheci, principalmente o Cinema Rex, na Pajussara. Porem gostaria de ressaltar ratifico as lembrancas mencionadas e vividas por quem teve o prazer de desfrutar de tantas alegrias e prazeres.
Apesar de eu ainda não ter nascido naquela época, ler essa descrição é um gostoso exercício de imaginação.
Obrigado pelas lembranças do que não vivi.
Esse texto é perfeito, me senti na pele do personagem na década de 40, que gosto bom essa leitura me deu, nasci no final da década de 80 infelizmente não pude viver essa época maravilhosa.